Uma Expresso Metafsica do Cinema
A pequena trama de Ces Errantes (2013), realizado em Taiwan pelo diretor malaio Tsai Ming-Liang, acompanha a misria e cenrios miserveis
A pequena trama de Cães errantes (2013), realizado em Taiwan pelo diretor malaio Tsai Ming-Liang, acompanha a miséria e cenários miseráveis. A miséria de um pai e seu casal de filhos após a deserção da esposa. Na primeira imagem do filme um plano fixo, extremamente longo, enquadra o ressonar das crianças: elas dormem e a câmara as contempla documentalmente, até exacerbar, pela duração, o documental em experimental. É o que faz o cineasta em todos os seus filmes. Quem lembra os sons impertinentes dos sapatos duma mulher sobre a imagem dela caminhando em Vive l’amour (1994)? Ao longo de todo Cães errantes, o processo estético de Ming-Liang vai repetir-se e recriar-se para o espectador: os planos se convertem em elásticos cuja extensão é naturalmente livre e obedece ao impulso de filmar.
Pode-se dizer que Cães errantes documenta uma certa miséria oriental? Ocorre, porém, que o método longo de Ming-Liang provoca a imagem a um comportamento metafísico. O sono das crianças se desenrola exteriormente diante da câmara. Mas no penúltimo plano da narrativa —talvez o mais longo—o homem e a mulher permanecem intensamente na imagem, ele está atrás dela, ele de vez em quando leva algo de beber à boca, parece ameaçar a qualquer momento uma aproximação, ela tem um olhar que tende a uma melancolia metafísica e daqui a pouco pode verter-se em lágrimas, o plano vai indo, vai indo, ele de fato tenta tocá-la mais para o fim, ela de fato vem a mostrar os olhos úmidos mais adiante, num capricho de lentidão ela sai do plano, ele fica mais um tanto e depois sai. É o supra-sumo do documentado transformado em metafísico. Restaura, em novas formas, o sorumbático cinema intelectual europeu dos anos 60.
Feito de muitos silêncios (as palavras são poucas e se caracterizam às vezes pela inutilidade do falar), Cães errantes tem várias exultações visuais, para além de sua obsessão do plano fixo: por exemplo, uma cena em que uma espécie de cortina (que é cenário e personagem) produz filtros amarelos na imagem. A água como um signo cinematográfico forte, presente no cinema de Ming-Lian pelo menos desde sua obra-prima O rio (1997), volta a invadir com reboliço as rebeliões pictóricas em Cães errantes: uma sequência numa canoa, junto à costa dum rio, o pai e as crianças diante da tormenta; fora isto, ruas molhadas na imagem, os sons da chuva em alguns quadros como sublinhando o silêncio das personagens em desfile.
O filme anterior do realizador que aportou por aqui, o extraordinário O sabor da melancia (2004), era certamente mais digerível pelo público dos cinemas e foi lançado em Porto Alegre numa sala de shopping. Mesmo assim, se tratava dum choque para o observador desabituado. Cães errantes chegou à cidade na sala P.F. Gastal, cuja proposta de programação é geneticamente de vanguarda, e justamente propõe ao assistente de um filme (vale para o filme de Ming-Liang, vale para a P.F. Gastal) um jogo de forças cujo prazer está no fato de extenuar-nos mesmo. O cérebro também precisa de suor.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br