A Revolta da Vida: A Morte
Em Trinta Anos Esta Noite, um pouco sob o signo do filósofo francês Albert Camus, o que está em cena é a revolta da vida: a morte
A primeira cena mostra um homem na cama com uma mulher: a despeito de o homem estar sendo puxado para o sexo e para o amor (ou seja, as agitações da vida), o rosto dele é tenso e vizinha com os abismos introspectivos mortais. A última imagem é um plano do mesmo homem que aponta um revólver para seu peito e dispara, depois é a escuridão da tela (ou seja, a morte). Entre estas duas imagens dotadas de rigor metafísico o cineasta francês Louis Malle edifica em Trinta anos esta noite (Le feu follet; 1963) sua reflexão sobre a esterilidade das inquietações intelectuais do século XX, naturalmente herdadas da literatura e dos pensadores do século XIX; era o anúncio de que o mundo intelectual estava perdido e logo (embora ainda o francês Jean-Paul Sartre esperneasse com seu palavrório) não teria mais condições de orientar o mundo.
É curioso observar como Malle se vale de aparentes improvisações e dispersões sem abdicar duma rigorosa unidade formal que emana de sua narrativa. Neste aspecto Malle se opõe bastante a seus contemporâneos da “nouvelle vague”, cuja jovialidade de filmar chegou a ser mesmo irresponsável, ainda que genial em alguns, como no franco-suíço Jean-Luc Godard. A sisudez (ou maturidade precoce) de Malle não topou boa acolhida entre François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer ou Jean-Luc Godard. Trinta anos esta noite é um filme extremamente fechado em si mesmo, mas que atinge uma grandeza estética que arrasta o espectador para seu próprio abismo; Malle radiografa com profundidade as desorientações dos tipos intelectuais de sua geração na figura de Alain Leroy, um pouco um autorretrato do próprio Malle que para não se suicidar na vida se suicidou na ficção, ou simplesmente fez filmes para fugir ao suicídio. Em Trinta anos esta noite, um pouco sob o signo do filósofo francês Albert Camus, o que está em cena é a revolta da vida: a morte. A vida revoltada é feita de mulheres, conversas intelectuais vazias, digressões pelo espaço duma cidade.
Maurice Ronet compõe uma das mais agudas introspecções da história do cinema, tão sinuosa e perversa quanto aquela do italiano Marcello Mastroianni em A noite (1960), de Michelangelo Antonioni. Entre as figuras femininas, a aparição rápida de uma das musas do cinema europeu de então, a francesa Jeanne Moreau. Com imagens ora saltitadas pelos melancólicos acordes do músico francês Erik Satie (acordes aproveitados muitos anos depois pelo espanhol Carlos Saura para sublinhar suas panorâmicas de memória em Elisa, vida minha, 1977), Trinta anos esta noite, apesar do pessimismo de seu olhar cinematográfico, aponta para o otimismo de um cinema que põe seguidamente em êxtase o observador. Viver sob a tensão da vida numa sala de cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br