Aldrich Transtorna Seu Proprio Classicismo
Segundo alguns, A Morte num Beijo nasce um pouco de Orson Welles e se derrama pelas investidas excentricas de David Lynch, dois cineastas americanos que revolucionaram o olhar do cinema
Talvez o auge do cinema do norte-americano Robert Aldrich tenha sido mesmo os anos 50 do século XX. A morte num beijo (Kiss me deadly; 1955) pertence a este topo. A narrativa começa de soco, no clímax duma ação: uma mulher, de roupão, parecendo saída espavorida da intimidade de seu quarto (onde quer que fosse), corre por uma estrada escura (é noite), tentando pegar uma carona, até que, jogando-se na frente dum carro, o motorista manda-a subir. Diante duma barreira policial, o espectador é informado de que a mulher é foragida dum manicômio. Passam-se mais alguns minutos, e o carro é interrompido em seu trajeto por outro carro, descem homens ferozes que decidem matar o motorista e sua carona. Depois se vê que o motorista sobrevive, é detetive e vai em busca de explicações para o que ocorreu, mas as coisas nunca se esclarecem senão que algumas pessoas ou grupos desejavam a morte daquela garota por motivos que não se saberá bem nem no fim do filme. Outro dado inquietante nesta abertura brusca e perigosa de A morte num beijo é a apresentação dos créditos iniciais: logo depois que a caroneira sobe ao carro, os créditos desfilam de baixo para cima e, enquanto passam os letreiros e o carro anda, o suspirar opresso da moça dá um diferencial sonoro à sequência.
Segundo alguns, A morte num beijo nasce um pouco de Orson Welles e se derrama pelas investidas excêntricas de David Lynch, dois cineastas americanos que revolucionaram o olhar do cinema. A comparação pode ser problemática, pois Aldrich é muito mais clássico do que Welles ou Lynch. Se as indicações de Welles e Lynch foram utilizadas como pistas para descobrir o enigma de um filme como A morte num beijo, a coisa calha; mesmo que a narrativa de Aldrich se abeira de tensões e dizeres absurdos para uma estrutura de suspense mais ou menos padrão, A morte num beijo faz como a garota que na cena final abre a caixa de Pandora para explodir com a luminosidade que vem de dentro da caixa o universo conhecido; é o que o cinema de Aldrich faz em A morte num beijo: transtorna seu próprio classicismo.
Comparando o filme de Aldrich com o romance de Mike Spillane em que se inspirou (romance que cognomina medíocre), o francês François Truffaut observa: “A astúcia dos autores do filme foi ter apagado tudo que havia de tolamente preciso no livro em prol de elementos puramente abstratos e até mesmo feéricos”. Assim, A morte num beijo é um filme de pura energia cinematográfica. E o segredo da direção de Aldrich está em, com extrema sutileza, acumular informações dum suspense policial que deixam praticamente todas as questões em caixa aberta: podemos fechar tudo num arcabouço lógico (lembra também Truffaut que esta lógica da história existe) ou, mais ricamente, evitar isto. De uma certa maneira, isto acontece (e em medida bastante diversa) nos filmes do mais doido dos cineastas americanos atuais, Lynch.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br