Ao longo dos anos, especialmente na juventude, em bibliotecas, li trechos O capital (1867), o monumento teórico-empírico em que o alemão Karl Marx desnuda os mecanismos do capitalismo. Nesta sexta década de vida em que me encontro, as impressões dispersas topam uma leitura total da obra. O capital é a radiografia do sistema econômico em que se movem as sociedades humanas, para além duma radiografia do capitalismo, que, bem ou mal, é o que determina todos os sistemas, pois a natureza do homem é feita deste egoísmo financeiro puro em que Marx a mergulhou em suas páginas.

Segundo o marxista francês Louis Althusser, O capital, que é a obra de uma vida, por sua exaustão de forças, traz uma das três grandes descobertas científicas de toda a história da humanidade; pelo exame de Althusser, a ferina descoberta marxista é a criação (ou o achado) de um sistema de conceitos. Althusser, em sua alucinação crítica, vê só dois outros momentos tão cruciais na história: os matemáticos gregos do século V a.C. e a Física de Galileu.

O primeiro volume de O capital, objeto deste artigo, após leitura detalhada, é uma extraordinária divagação sobre a forma como se produz o capital, as relações entre as coisas e o dinheiro, o excedente que é retirado do trabalho, o uso de mulheres e crianças em condições precárias nas fábricas e o lado acumulativo e improdutivo do capital. Marx é um marxista? Diz-se melhor que Marx é um capitalista que fez a crítica do capitalismo.

O lado sonhador de Marx foi utilizado pelo comunismo e pelos regimes socialistas. Na prática, esta utilização caducou e falhou: sabemo-lo, uns o revelam com ira acusatória, dedo em riste, outros curvam-se com melancólico reconhecimento na mesquita da realidade. O que sobrevive em Marx (digam o que disserem seus algozes ideológicos, geralmente bastante inferiores à complexidade de seu pensamento) é a aguda crítica da economia política: ele atinge a estrutura das coisas para meditar sobre os funcionamentos econômicos da sociedade. O capital avança da sociedade de soluções mágicas para os tempos da ciência. “À mesma época em que na Inglaterra deixou-se de queimar bruxas, começou-se a enforcar falsificadores de notas bancárias”, anota Marx numa percepção ainda hoje imbatível. Atravessamos uma ponte: a das crendices para as lucubrações. O capital é uma aventura intelectual sobre a própria natureza das ações das pessoas por um universo de conflitos variados, em que a posse dos bens e serviços ao mesmo tempo em que determina tudo o mais nasce também da essência do homem, seu egoísmo que precisa a certa altura ser domado para sua própria sobrevivência. Esta essência (ou natureza), é sabido, não tem mutações: as cores é que mudam.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)