O Picaresco Desde a Linguagem
O amazonense Marcio Souza tem seu livro mais famoso em Galvez, o imperador do Acre (1976), um romance que traz uma personagem picaresca
O amazonense Márcio Souza tem seu livro mais famoso em Galvez, o imperador do Acre (1976), um romance que traz uma personagem picaresca, bem latino-americana (apesar da criatura real ser europeia), e que articula uma linguagem de grande inventividade e sugestão para criar um cenário apropriado para os deslocamentos desta criatura. O cenário é o ciclo da borracha no norte do país, no princípio do século XX, a luta entre o anacronismo e os avanços, que no fundo são a base da personalidade brasileira e certamente latino-americana. A personagem é o espanhol Luís Galvez Rodrigues de Aria, um dos tantos aventureiros do Velho Mundo que vieram criar seus delírios nas terras do Novo Mundo, desde o quinhentismo.
Dividido em capítulos curtos e com títulos, o trabalho de Márcio chega a citar, em seus movimentos iniciais, a Euclides da Cunha (“Em 1922 do gregoriano calendário o Amazonas ainda sublimava o latifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a uma palmeira de Euclides da Cunha.”) e a José de Alencar (“E ainda com o mestre de Mecejana, digo aos leitores que ‘se avenham com o mundo, que é o titereiro-mor de tais bonecos’ ”), mas, ao longo de suas páginas, construídas quase em síncopes que por pouco não estorvam o fôlego narrativo, vai equilibrando seu conjunto moderno nas alusões arcaicas e escolares, como ao pescar “a ceroula de Coelho Neto ainda nos fazia rir quando o gongo da porta soou e um homem de ar jovial, um lenço azul no pescoço, entrou fazendo soluções de inesperado”.
Com domínio da estrutura narrativa, o narrador de Galvez, imperador do Acre encaminha o encerramento de suas aventuras. “Eu fui derrotado pelo século XX. Sou um personagem dos oitocentos sem profilaxia e nestas folhas de papel venci minha temporada de vida”. A literatura de Márcio Souza, conquanto feita de linguagem, tem o cheiro de vida: barroca, borbulhante. Pícara. Um flagrante deste sopro vital feito de estilo: “Haviam sido esses banhos de igarapé, com cestinha de vime e galinha tostada, espalhados sobre toalhas de linho pela margem do curso d’água, que introduziram o uso do maiô de banho para mulheres, abolindo os antiquados vestidos escuros para as senhoras e as combinações reveladoras das prostitutas. As novas vestes provocaram escândalo entre as senhoras e um protesto do cura, no sermão de domingo. Mas era uma dívida de civilização que o Acre contraía para sempre. Thaumaturgo Vaez escreveria em seu caderno de notas, o banho das francesas: ‘num feminino alarido de náiades em luxuriante cenário de verduras e água cristalina.’ ”. O rocambolesco visto sob a perspectiva sarcástica do romance de Márcio Souza.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br