O Frescor Cinematofrafico em Arthur Penn
Um lance no escuro se constroi com um frescor e um engenho que ainda permanecem
Bem no início de Um lance no escuro (Night moves; 1975), um grande filme hoje pouco citado de Arthur Penn, o detetive Harry Moseby (uma interpretação extremamente precisa e inventiva de Gene Hackman) é convidado por sua esposa Ellen (Susan Clark, numa composição de notável maturidade) para ir ao cinema ver Minha noite com ela; Harry responde que não quer ir, já viu outro filme de Eric Rohmer e teve a impressão de estar vendo um quadro antigo. Nesta citação irônica e também maldosa a Rohmer, cineasta francês que recheia seus filmes de muita conversação entre o intelectual e o banal, Penn estabelece sua conversa indireta com o espectador sobre duas formas de aproximação à narrativa em cinema, a forma americana (a de Penn, mais física, apesar das sutilezas e suavidades da montagem num filme como Um lance no escuro) e a forma francesa (introspectiva e espiritual). Penn tem suas influências do cinema europeu, mas é profundamente americano. Estas associações e dissociações entre duas cinematografias separadas pelo Atlântico duelam admiravelmente no estilo de filmar de Um lance no escuro. Quando a esposa chega em casa, e Harry lhe pergunta do filme, ela só sabe dizer, meio sem ter o que dizer: “muita arte”. Harry não foi com sua esposa ver Rohmer: ela levou o amante; indo esperá-la, ao cabo da noite, à saída do cinema, viu-a com o amante, aos beijos, e então voltou para casa, sem descer do carro. Vida e cinema são feitos de amor e traição.
(Esta discussão sobre o cinema de Rohmer, os que o amam por seu refinamento e elaboração intelectual que traz para a imagem a palavra e o pensamento raros confrontando-se com aqueles que se aborrecem com as circunscrições verbais que eleva em ideia muita coisa banal que está dita, é um dado folclórico antigo no mundo do cinema. Entre os espectadores, certo, mas também entre diretores de cinema, que, como Penn, inserem provocações para os espectadores variados. No filme francês Há tanto tempo que te amo (2008), de Philippe Claudel, numa discussão à mesa, um homem diz de sua surpresa de ver que uma professora de literatura não gosta do cinema de Rohmer, justamente um cineasta que trouxe a literatura para o cinema; um outro alega, defendendo a professora, que não significa que ela não compreenda Rohmer: somente que ela não gosta de seu jeito de fazer cinema.)
Enovelado em seu problema conjugal, a personagem central vai desligar-se de si ao ser contratado por uma estrela hollywoodiana em declínio para trazer para casa sua filha adolescente que fugira. Harry entrega-se com obstinação a este trabalho. E envolve-se nas grandes confusões da trama que depara. Descobre a adolescente (Melanie Griffith, estreando no cinema) tendo uma relação ambígua com seu padrasto, que, longe da mãe da garota, comporta sua atração pela menina e o caso com uma mulher a quem a garota é confiada. Harry mergulha por aí e é atraído para as teias: também tem relações dúbias com as mulheres. Mas acaba levando a jovem para casa. Que, logo depois de voltar, é morta. Há, por trás do crime, a ganância, o dinheiro: Harry sai de novo a investigar e as ações são mais fortes e cheias de sangue. Como história de detetive, Um lance no escuro se constrói com um frescor e um engenho que ainda permanecem; como uma visão da América do tempo da guerra do Vietnã e dos assassinatos dos Kennedys, o filme é tão cortante quanto é habitualmente a filmografia de Penn.
Pode não estar entregando toda a inovação formal de Bonnie e Clyde (1967), seu filme mais badalado e aquele que se tornou um signo maior que seu diretor. Mas propõe a mesma acuidade cinematográfica, a mesma agudeza de composição de suas personagens. Com o passar dos anos, aquela dialética de associações e dissociações entre Minha noite com ela e Um lance no escuro se aninha melhor dentro da estrutura do cenário e da composição da câmara. Aproximam-se diferenciando-se em melhor grau.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br