Você acredita ainda na fraternidade humana? Que o bem-estar de todos depende de cada um de nós? Que é possível nos ajudarmos, pois fazemos diferença nas vidas uns dos outros ? Se a resposta é afirmativa, então talvez você não saiba, mas você é um John Doe. Quem disse isso foi o diretor de cinema ítalo-americano Francesco Rosário Capra, que entrou para a história da sétima arte como Frank Capra, e há 80 anos. O filme, um clássico fabuloso, foi “Adorável Vagabundo” (Meet John Doe), e impressiona se você perceber que seu tema ainda é incrivelmente atual.

Na história, a jornalista Ann Mitchell (Barbara Stanwyck) é demitida quando o jornal para o qual trabalha “The Bulletin” é vendido. Revoltada ela publica uma carta fictícia assinada por um desconhecido, batizado de John Doe (na tradução, João Ninguém), na qual ele denuncia as injustiças sociais e anuncia que vai pular do topo do prédio da prefeitura na noite de Natal. A tiragem do jornal multiplica-se, e assim Ann salva seu emprego e começa a escrever a coluna “Eu Protesto” em que dá voz aos anseios do povo. Com a pressão do público contratam o anônimo “John Willoughby”, ex jogador de baseball que desiludido, virou mendigo. Este surge na tela encarnado pelo fantástico Gary Cooper, acompanhado de seu amigo, chamado de “Coronel”, personagem de Walter Brennan, que funciona como sua consciência, sempre lembrando o quanto as pessoas são mal-intencionadas.

Tudo complica porque D.B.Norton (Edward Arnold), o dono do jornal, começa a manipular o assim chamado “Movimento John Doe” para realizar maquinações políticas visando fazer de Norton o próximo presidente. Lembrando que o fantástico Renato Russo disse em uma canção “Os assassinos estão livres, nós não estamos”, os inescrupulosos distorcem toda a boa fé por trás dos Does, ou como preconiza o Coronel, os “abutres” só querem nos privar de nossa liberdade e vontade própria para tirar proveito. Quando ameaça revelar toda a verdade John é desmascarado, acusado de farsante, e torna-se bode expiatório destruindo toda a ideia iniciada. Como única forma de se redimir, John decide esperar a noite de Natal e cumprir a ameaça da carta que iniciou tudo, disposto a se sacrificar para provar que ainda existe decência e verdade em um mundo de abutres. O que virá ... precisa assistir ao filme, despido de qualquer preconceito que se tenha com filmes em preto e branco.

Na época do lançamento os americanos viviam recém-saídos da grande depressão, isolados da guerra na Europa, ao menos até o ataque a Pearl Harbor, que ocorreria em dezembro daquele ano. O filme de Capra exalta o humanismo, a importância da boa vontade e o quanto o povo adormece enquanto o totalitarismo, o capitalismo predatório consome a alma humana. Frank Capra fez de sua filmografia a defesa do homem comum contra um sistema corrupto, visto ainda em filmes como “A Mulher Faz o Homem” (Mr. Smith Goes to Washington) de 1939 , ou um brado pela causa dos que ousam ter boas intenções, visto através de Longfellow Deeds em “O Galante Mr.Deeds” (Mr.Deeds Goes to Town) de 1936 ou George Bailey em “A Felicidade Não se Compra” (It’s a Wonderful Life) de 1946. Curioso imaginar o que Capra teria a dizer hoje em um mundo de fakes news dispersando nossa visão, memes que desviam nossa atenção por nada e ainda doente com a corrupção e politicagem feita nos bastidores de uma pandemia que deveria nos mostrar o quanto precisamos uns dos outros, os Does do mundo atual.

Indicado para o Oscar de melhor história original, assinada por Richard Connell e Robert Presnell Sr, o filme teve o roteiro feito por Robert Riskin, usual colaborador de Capra. Incluindo o final do filme foi reescrito cinco vezes depois que Capra ficou insatisfeito com as exibições teste, sendo que o final escolhido (Sem spoilers!!) surgiu na sugestão de um fã do diretor que lhe escrevera. Foi o primeiro filme independente do diretor, depois de sair da Columbia, se associando com a Warner Bros para garantir sua distribuição. Infelizmente os altos impostos cobrados na época levaram Capra a fechar a “Frank Capra Productions”.

Muitos acusaram Capra e seu filme de serem populistas, piegas e ingênuos. ABUTRES !!!!! Veja, até Renato Russo nos lembrou em sua canção “Há Tempos” que disciplina é liberdade, ter bondade é ter coragem, e o mundo precisa muito lembrar o que significa ser um Doe, sem que precisemos do sacrifício capraniano, mas que fizesse os abutres perceberem que é, de fato, a verdadeira democracia, de que o povo, ora o povo como diz o personagem de James Gleason não pode ser detido quando movido por uma causa. Ainda há espaço para a boa vontade e a fraternidade, para aprendermos a dar um bom dia a nosso vizinho, e a descobrir que somos peças de uma mesma engrenagem, somos todos Does.