O Interminavel Mundo Novo

A Nuvem Rosa mergulha na irrealidade do real. E capta o que pode haver de onanista nos individuos que se isolam

25/09/2021 02:40 Por Eron Duarte Fagundes
O Interminavel Mundo Novo

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Quando foi que começou este interminável mundo novo? Com o cinema? Com a televisão? Com a internet? O mundo novo é o mundo da imagem. Não a imagem que vemos nas ruas. Mas a imagem que vemos numa tela: a imagem duma imagem do lado de fora da tela. As torres gêmeas de Nova Iorque vieram abaixo: mas para boa parte dos habitantes do planeta, esta realidade foi transformada primeiro em imagem e, transformando o homem num espectador, é assim que a realidade permanece, uma imagem. Os primeiros movimentos da pandemia do coronavírus foram, para a maioria de nós, imagens: imagens dos cadáveres contaminados empilhados na Itália, por exemplo. Fatos como a pandemia e seus efeitos (o isolamento) radicalizam o que já estava no ar: o homem da era da imagem, da videochamada.

A nuvem rosa (2021), uma produção brasileira dirigida pela gaúcha Iuli Gerbase, é um filme rodado em 2019, escrito em 2017. A trama acompanha uma estranheza internacional: uma nuvem rosa cuja origem e consequências não são bem conhecidas (estudos há, mas não são conclusivos), leva as pessoas a ficarem encarceradas em suas casas por anos. O casal central do filme, Giovana e Yago, se conhece pouco antes do fenômeno e, isolados à força, vivem numa espécie de casamento o que poderia ser um caso passageiro; embora resistentes à formação de família, eles acabam gerando um filho, que nasce, se cria e vai crescendo sob a nuvem rosa e as circunstâncias humanas que ela gera. É pelo crescimento desta criança que o observador vê como os anos se passaram, como a nuvem rosa não vai embora. O relacionamento do casal e a nuvem seriam passageiros, inicialmente: mas duram, vão durando. As idades deste filho do casal são uma espécie de marcador de página do rimo narrativo perturbador do filme de Yuli. Mas o isolamento mantém, ou não altera, a dubiedade do comportamento humano: com a chegada do tédio à relação, ele e ela têm seus amantes; ele descobre uma garota pela videochamada e transa com ela na própria tela, transa com uma imagem, eis aí a característica masturbatória da imagem, qualquer imagem; ela, à distância, vê um rapaz numa outra janela, ela e o rapaz se despem, se erotizam, se autossatisfazem (ou fazem sexo à distância, o corpo distante quase como uma imagem imaterial?).

A nuvem rosa mergulha na irrealidade do real. E capta o que pode haver de onanista nos indivíduos que se isolam. A simplicidade e a pressa podem conduzir o assistente a associar o universo construído do filme com o universo em ebulição do lado de fora da sala de cinema, nos dias de hoje. Mas é uma associação que traz um grau de falsidade: no cinema, numa obra de arte de maneira geral, as coisas são mais radicalizadas. O observador que, desafiando o vírus ao sair de seu isolamento, foi até uma sala de cinema para ver o filme, tem uma percepção mais de irrealidade; aquele outro que, mais temeroso, não sai de casa e lida só com a imagem na tela doméstica, se encaminha para outro sentido, mais próximo da terrível claustrofobia em que Iuli faz mergulhar suas personagens. Sair do cinema para a rua após uma experiência visual claustrofóbica é diferente do que, diante desta mesma experiência, fechar uma tela para permanecer na cama ou ir ao banheiro; a diferença entre o alívio de perceber a irrealidade e a asfixia de estar encarcerado na irrealidade.

Dirigindo seus atores com bastante engenho, Iuli dá a Renata de Lélis e a Eduardo Mendonça, nos papéis centrais, um extraordinário vigor nas interpretações. Curiosamente, embora faça seu filme à sua originalidade, Iuli se alinha num grupo de mulheres brasileiras que dirigem suas narrativas para o extravagante e o fantástico, com pés no alegórico (a nuvem rosa é um pouco um símbolo da atmosfera contaminada por nós); lembro, a esmo, obras como Mormaço (2018), de Marina Meliande, As boas maneiras (2017), de Juliana Rojas (embora codirigido por um homem, Marco Dutra), A sombra do pai (2019), de Gabriela Amaral Almeida. E há também um superestimado filme sul-coreano, Parasita (2019), de Joon-ho Bong, que se enquadraria, no sentido geral, numa categoria aparentada. O que ocorre? Iuli dá seu recado com muita personalidade cinematográfica. Como diz o letreiro final, qualquer semelhança é coincidência.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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