De Lumiere a Godard: E o Ultraje de Aumont

Para que o leitor-espectador que se delicia com o pensar cinematografico (sao poucos, admito), O olho interminavel eh um manancial

03/03/2020 14:31 Por Eron Duarte Fagundes
De Lumiere a Godard: E o Ultraje de Aumont

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O ensaísta francês Jacques Aumont, em seu livro O olho interminável (cinema e pintura) (1989), lançado entre nós pela Cosac & Naify em tradução de Eloísa Araújo Ribeiro, visa a desmontar o olho habitual com que vemos as relações entre o cinema e a pintura. Nascido da fotografia, cuja existência passou a alterar as perspectivas da tela pictórica, o cinema sempre buscou inspirações em sua irmã ancestral, a pintura, talvez para fugir um pouco de suas origens de espetáculo de feira e atingir a nobreza artística; a natureza plástica assemelhada do cinema e da pintura favoreciam a aproximação. É esta tensão plástica aproximativa que Aumont quer descaracterizar para topar outros paralelos; paralelo é um termo que cai bem aqui, pois alude a linhas que não se encontram mas seguem caminhos aqui e ali parecidos.

Aumont parte da análise dos filmes primitivos de Lumière, referindo certas palavras que o crítico e cineasta francês Jean-Luc Godard disse propósito do pioneiro: “o último pintor impressionista”. Estudando as imagens criadas por Lumière, Aumont aproxima para afastar as duas artes, valendo-se de garra crítica e raciocínio elevado; Lumière foi o iniciador do cinema e, trabalhando com imagens em 1900, só poderia mesmo ser o último pintor de uma era, a dos impressionistas franceses. Lumière seria, para Aumont, a confluência da pintura com o cinema: a pintura em movimento, somos tentados a pensar, mas Aumont quer dissociar as duas artes, acentuando semelhanças para logo fulminá-las, e no fim só recorre a uma associação, aquela reivindicada, curiosamente, por um autor comercial, o norte-americano Martin Scorsese: liberdade para o cineasta diante de sua obra, como o pintor tem diante da sua; a pintura para o cinema se converte, pois, num projeto utópico.

Começando com Lumière, um pioneiro cuja verdade como realizador cinematográfico causa dúvidas e perplexidades e controvérsias, começando com Lumière a partir de uma frase de Godard, Aumont vai concluir seu pensamento construindo estudos de filmes de Godard, desde os borrões vermelhos de Pierrot le fou (1965), passando pelas formas de enquadrar de Salve-se quem puder (a vida) (1980) e Je vous salue, Marie (1985, até chegar às complexas relações pictóricas de Passion (1982), desaguando neste último filme a inspiração básica do ensaio. A frase dita em A chinesa (1967) pela criatura de Jean-Pierre Léaud (“Lumière foi o último pintor impressionista”) é desenvolvida, sem uma característica explícita, no filme Passion e aprofundada epistemologicamente no texto de Aumont.

Em sua conclusão, Aumont vai arrimar-se ainda no filme francês Teresa (1987), de Alain Cavalier; é um arrimo surpreendente e inesperado, pois, conquanto articulada em muitos aspectos pictoricamente, a realização de Cavalier evoca uma plástica mais teatral; e surpreende mais ainda a inserção de Aumont, porque, em seu ensaio, o pensador esqueceu-se (adrede ou por desinteresse quase inconsciente) de uma série de filmes cuja estrutura pictórica é bem mais saliente que em Lumière, Godard ou Cavalier. Talvez seja por isso mesmo que o analista os abandonou: suas breves referências a Vincent Minnelli indicam que Aumont não vê a coisa assim, ele é um defensor radical da autonomia do cinema — apesar da contaminação.

Para que o leitor-espectador que se delicia com o pensar cinematográfico (são poucos, admito), O olho interminável é um manancial. Para os outros (a maioria que frequenta cinema), parecerá árido e destituído de emoção. É um trabalho de rigor, que explica bem o cinema e estabelece caminhos difusos para se perguntar que diabo a pintura está fazendo dentro do cinema. Talvez um filme  como A inglesa e o duque (2001), do francês Eric Rohmer, todo ele atulhado de telões pintados, pudesse causar engulhos à ideia meio purista de Aumont que não se tocou nunca de questionar por que em alguns filmes a utilização pictórica é temática e formalmente mais adequada em outros.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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