Duas Atrizes
O grau de interesse de Os olhos de Tammy Faye nasce basicamente do desenvolvimento cenico da atriz Jessica Chastain
Os olhos de Tammy Faye (The eyes of Tammy Faye; 2021), dirigido por Michael Showalter, com roteiro de Abe Sylvia, parte dum documentário homônimo feito em 2000. A história original é algo que de fato aconteceu nos anos 70 e 80, quando a mídia religiosa teve seu pico e encontrou na sociedade americana o ninho adequado; neste habitat histórico a ascensão da figura de Tammy Faye Baker, secundada por seu marido, um pastor, se tornou algo bem natural. A realização de Showalter tem uma certa objetividade obtusa, com as simplificações de filmar de trabalhos gravados às pressas para a televisão. Mas não se pode negar o bem feito ianque de apor sua visão das relações entre mídia, religião e poder político aos momentos atuais, do século XXI, a despeito de a história original se passar décadas atrás.
O grau de interesse de Os olhos de Tammy Faye nasce basicamente do desenvolvimento cênico da atriz Jessica Chastain, uma das mais marcantes interpretações do cinema em muitos anos. O olhar cinematográfico para com a religião como espetáculo é ora sarcástico, ora contrito. A humanidade complexa da personagem é dada pela aproximação amorosa de Jessica com Tammy. Numa mesa redonda na imprensa americana, Jessica confessou: “Eu me senti culpada porque minhas lembranças de Tammy Faye era de que ela era vulgar, uma criminosa, uma pessoa má, todas essas coisas. Mas quando eu vi o documentário, me questionei, ‘por que gastamos muito mais tempo falando do rímel usado por ela do que sobre aquilo que ela fez?’” Jessica entrega-se inteira no filme, vencendo seus próprios estereótipos e os do filme em que está inserida. Jessica é a grandeza que falta a Os olhos de Tammy Faye, que com sua maquiagem rebuscada para a figura de Tammy apresenta um olhar para as ingenuidades da religião bastante longe dos tons subterrâneos e cruéis do filme brasileiro Divino amor (2019), de Gabriel Mascaro, e ainda mais distante do rigor clássico e da precisão de crítica social de Entre Deus e o pecado (1960), de Richard Brooks. Desleixado muitas vezes, Os olhos de Tammy Faye topa nos rompantes fellinianos um instante mágico do cinema.
Feito para produtores ingleses e alemães, Spencer (Spencer; 2021) é o ponto mais exigente, do que se conhece por aqui, da filmografia do diretor mexicano Pablo Larraín. A narrativa lenta, o refinamento estudado dos cenários, a introspecção de filmar que já nasce na própria montagem produzem uma interioridade que faz avançar o cinema de Larraín para um modelo reflexivo e original que se põe um pouco à margem das facilidades de ver dos espectadores dos cinemas comerciais, a quem o filme é, do ponto de vista midiático, endereçado. É bem verdade que o nome da princesa Diana, por ser da família real inglesa e por tudo o que sua vida trouxe como característica de nossa época, atrai naturalmente o público. Também a estrela central da produção, a atriz americana Kristen Stewart, uma bola buscada pelos produtores desde seu sucesso junto aos jovens com os filmes da Saga Crepúsculo, pode apresentar Spencer como um bom produto para venda nos cinemas.
Mas tanto o cineasta latino quanto sua jovem estrela subvertem este natural processo de comercialização de um filme. E produzem uma estética à margem, em paralelo com os possíveis resultados de bilheteria. Larraín atinge o ponto mais interessante e mais maduro de suas tendências estilísticas: falando dum indivíduo da nobreza, ele busca, em planos tão compassados quanto asfixiantes, o lado interior, e tenebroso, deste ser; ele não vai ao trágico desfecho da vida de Diana, mas a um momento de instabilidade do coração da personagem, quando o casamento com o príncipe Charles ia à deriva; no início do filme Diana está dirigindo por uma estrada de interior onde ela se perde; ao longo do filme este signo da perdição a acompanha interiormente, ainda que os exteriores reluzam, numa transparência para interiores secretos e abissais. E de Kirsten podemos dizer que a atriz chega a uma interpretação transbordante e ao mesmo tempo colada na personagem; tempos depois dos devaneios vampirescos que a catapultaram para o estrelato, tendo passado pelas mãos dum diretor tão exigente quanto Olivier Assayas (Acima das nuvens, 2014, e Personal shopper, 2016), a intérprete ajuda o diretor Larraín a pôr na tela uma personagem supreendentemente inovadora na pele duma criatura real bastante massificada pelo aparelhamento midiático.
Spencer é um filme de sugestões e sutilezas. Não tão profundo quanto um cineasta mais radical que Lorraín poderia ter feito. Mas com uma sensibilidade de direção e interpretação que exige um espectador menos comprometido com as convenções cinematográficas em que inicialmente a embalagem de divulgação de um filme como esse poderia inserir-se.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br