Um Cineasta Fora do Cat?logo

Robert Bresson eh um realizador que dificilmente encontrara no publico de cinema as condicoes de sensibilidade para o recepcionar

20/10/2022 20:53 Por Eron Duarte Fagundes
Um Cineasta Fora do Cat?logo

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Robert Bresson é um realizador que dificilmente encontrará  no público de cinema as condições de sensibilidade para o recepcionar. Certo: ele faz filmes, seu público (pouco ou muito, que importa) é o de cinema. Certo: o cinema do espírito sempre teve dificuldades com as plateias educadas pelas estruturas materiais de um filme. Mas certamente Bresson, por um qualquer mecanismo único de sua linguagem cinematográfica e da visão de como as coisas devem processar-se sob sua orientação, é bastante mais incompreendido pelos espectadores que o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman. Bresson é mais secreto em seus postulados estéticos. No cinema vemos a aparência: Bresson corta esse globo ocular, mesmo na plasticidade (espiritual) de que se vale.

As damas do bosque de Bolonha (Les dames du bois de Boulogne; 1945) dá bem a nota desta marginalidade irreversível dos modelos de Bresson no mundo do cinema. A origem é uma das histórias contadas em Jacques le fataliste et son maître publicado postumamente em 1785 (seu autor, o francês Denis Diderot, viveu entre 1713 e 1784). Este romance de Diderot é estruturado como um diálogo moral e filosófico entre Jacques e seu amo; este diálogo é traduzido em várias histórias que desaguam umas nas outras ininterruptamente, quer dizer estas histórias são aqui e ali interrompidas por outras histórias que sucedem aos olhos do narrador e das personagens. O conto que dá origem ao filme de Bresson (os diálogos do filme foram escritos pelo poeta e cineasta Jean Cocteau, a seu jeito de sofisticação literária realçada) trata dum projeto de vingança duma mulher, no estranho romance de Diderot ele é narrado (para Jacques, para seu amo e para o leitor, amiúde convidado a dialogar pelo narrador) pela hoteleira do local onde Jacques  e o amo estão hospedados, mas a história, como tantas no livro, vai aos pedaços, a hoteleira tem de atender outros hóspedes e nos interstícios Jacques entretém seu amo com outras aventuras de memória e palavras: no livro, Madame de la Pommeraye foi abandonada pelo marquês, seu amante, no passado, e tempos depois, ao dar com uma mulher da vida, como se dizia, vê a oportunidade de seu projeto; no filme, de la Pommeraye é Hélène e depara com a fêmea frágil Agnès num palco de dança dum cabaré; no livro e no filme, a criatura maquiavélica da amante despeitada oculta do homem (no filme o marquês tem outro nome, Jean) as sombras da prostituição de Agnès (no livro esta personagem tem um nome de família, Duquênoi, e um codinome de batalha, D’Aisnon), e a maquiavélica usa tanto Agnès quanto a mãe de Agnès para enlear a figura do homem num enleio sentimental perigoso e irreversível. A paixão se instala entre Agnès e Jean, e decidem casar-se: (estou agora passando ao filme). Já no altar do matrimônio, Hélène assopra ao ouvido de Jean, para consumar a vingança, que ele acabara de casar-se com uma prostituta. Maria Casarès, na pele maquiavélica, corresponde com perfeição à sinuosidade da personagem de Hélène. É de notar também que os tons manipuladores desta criatura se assemelham, no texto de Diderot e no filme de Bresson, às formas de construção de outra manipuladora clássica da mesma época ou século, a Marquesa de Merteuil de As ligações perigosas (1782), do também francês Choderlos de Laclos, já levada ao cinema algumas vezes. De uma certa maneira, e numa instância menos trágica e mais de vagar humorístico (o humor como o refinamento intelectual — o irônico), outro francês, o diretor de cinema Éric Rohmer, fortemente um bressoniano pós-bressoniano, utilizou igualmente uma personagem manipuladora das outras personagens, como um sub-narrador, a Aurora de O joelho de Claire (1970), que constrói a ficção do filme primeiro cerebralmente ao excitar os movimentos de Jerôme, seu amigo, na direção de algumas garotas. Rohmer zomba; Bresson faz a tragédia do espírito; Diderot propõe jogos arcaicos de narração (arcaicos porém ainda de tensão profundamente moderna), dos quais Bresson se despoja.

No fundo, o que se vê em As damas do bosque de Bolonha é a arte da austeridade de Bresson para sustentar os exageros verbais que Cocteau traz dos móveis antigos de Diderot. Cinematograficamente, é um exercício de depuração extremo. Claro: Bresson ainda não chegara às portas secas de O processo de Joana d’Arc (1961). Mas é bem palpável que o cineasta logra transformar o romântico-decadente da história de Diderot numa reflexão fria e impiedosa. Os gestos finais de As damas do bosque de Bolonha, com a enviesada aproximação sentimental entre Jean e Agnès, mesmo à perplexidade do cinismo de Hélène, que queria comandar o espetáculo (ainda que espetáculo não seja um termo aceito por Bresson), elucidam uma transformação de almas que ultrapassa as características aparentes das personagens: o diálogo confessional de Agnès (no texto de Diderot lemos, “tant de filles honnêtes sont devenus de mallhonnêtes femmes, que peut-être serai-je un exemple contraire”, audível de maneira sincopada no filme) e a expressão facial de morbidez imbatível da intérprete Élina Labourdette trazem alguns dados que fogem ao controle especificamente cinematográfico, daí a incompreensão de muitos, ao mesmo tempo em que este diálogo e esta expressão da atriz subvertem seus antecedentes substratos literários. Quase um incógnito jogo de damas em torno da cascata do bosque de Bolonha.

P.S.: Curiosamente, o filme foi rodado nos estertores da guerra (que findava) em Paris. Consta que as filmagens foram truncadas pelos cortes de energia elétrica e pelos anúncios de bombardeios na cidade. Nada destes tumultos transparece nesta realização tão concisa quanto aguda.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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