O Encantamento da Rotina: O Cotidiano Estranho e Belo
Historias que So Existem Quando Lembradas (2011), da cineasta brasileira Julia Murat, tem muito mais de um documentario do que de uma ficcao
O cenário (de origens reais, embora nominado como fictício) é um lugar perdido no tempo e no espaço. Os longos silêncios da paisagem e do universo rural são preenchidos por gestos e palavras rotineiros. Histórias que só existem quando lembradas (2011), a primeira narrativa de ficção da cineasta brasileira Júlia Murat, filha de outra cineasta conceituada, Lúcia Murat, tem muito mais de um documentário do que de uma ficção; o que há aí de ficção é a encenação, mas o reiterativo das ações das personagens e as características desdramáticas do avançar das imagens remetem àquela posição de registro da câmara documental —não, é claro, um registro inocente, mas um registro crítico.
Uma velha padeira que chega à venda onde trabalha dá bom dia a seu velho patrão, começa a arrumar os pães. Ele, o patrão, resmunga: “Custa você fazer do jeito que eu tô mandando.” Ela segue fazendo do jeito dela, enfileirando os pães na prateleira. Ele está moendo pachorrentamente o café. Café que ambos num plano seguinte tomarão juntos sentados no banco da frente da venda, ele dizendo “é a chuva que vem”. Estas cenas são reencenadas mais de uma vez: é assim a vida, feita de gestos repetitivos e minúsculos. Outra sequência que se repete: o plano da igreja com os sinos tocando e os fiéis dirigindo-se à missa, no plano seguinte o interior da igreja com vários velhinhos orando sob o comando de um padre com sotaque estrangeiro. Júlia é insistente em sua capacidade de maravilhar com a rotina de filmar. O que logo vem à mente é o ritmo narrativo e a as afeições cotidianas de A árvore dos tamancos (1977), do italiano Ermano Olmi. Então surge a forasteira, a fotógrafa jovem, que vem ter ali por acaso, para filmar lugares abandonados. E, na cena do pão e do café dentro da venda, a padeira pergunta ao homem: “Que você acha dos jovens?” Ela está depondo seu estranhamento diante da jovem que chegou ao povoado. Ou seja, a rotina acontece (o pão, o café), mas às vezes ela pode ser alterada —pela forasteira, que gera a pergunta: o que quer uma jovem num lugar tão velho, tão cheio de velhos? Ela quer fotografar, talvez. Numa das últimas imagens em movimento do filme, a fotógrafa despe a velha para uma imagem que vai ser ao mesmo tempo pura, natural e atrevida. O que vem depois é o funeral da velha. E são estes ritos de passagem — da juventude à velhice, da velhice à morte— que determinam a inovadora linguagem cinematográfica de Histórias que só existem quando lembradas. E o profundo realismo que emana das imagens e dos diálogos do filme de Júlia não se submete à inspiração ocasional: sabe-se que a diretora entrevistou vários seres longínquos e interioranos para chegar à veracidade de seu roteiro final.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br