A Degradação do Homem, Por Um Olhar Moral

Bem-vindo a Nova Iorque debruça sua plasticidade sobre as operações torpes de sua personagem

12/09/2014 10:16 Por Eron Fagundes
A Degradação do Homem, Por Um Olhar Moral

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As sequências iniciais em que se descrevem as libidinagens do banqueiro francês Devereaux é uma espécie de “doce vida”, orgíaca e decadente, “satyricon” pós-tudo, passada num dos corações do mundo contemporâneo, Nova Iorque. Abel Ferrara, o diretor norte-americano de Bem-vindo a Nova Iorque (Welcome to New York; 2013) apresenta sua herança italiana ao expor, com absoluta nostalgia moral, a navegação de sua personagem central pela lascívia fácil de algumas mulheres cujos corpos se expõem nos escaninhos de alguns quartos de uma das capitais culturais e econômicas da atualidade. Junto com os belos corpos das garotas vemos a exposição do físico detonado pela gordura e pelos anos de Gérard Depardieu, o que é um achado selvagem na narrativa de Ferrara; enfim, o homem que já foi soberbamente um Danton, revolucionário pré-burguês do século XVIII, aparece como uma assombração moral de nosso tempo; sublinhando o corpo grotesco do ator surgem-lhe alguns gemidos inauditos e animalescos na hora do sexo, ou quase-sexo às vezes, ajudando assim a Ferrara a compor um retrato desorientado e maldoso do homem que, para buscar seu prazer sexual, não media limites nem a vontade das parceiras. Tanto Ferrara quanto Depardieu parecem investir contra o monstro carnal, assim como Fellini simulava detestar seu protagonista em Casanova de Fellini (1976), outro antológico andarilho do sexo, um andarilho à antiga aquele de Fellini, que atravessava entre delírios particulares e mofas do povo a perplexidade do espectador. No entanto, em Bem-vindo a Nova Iorque o olhar moral de Ferrara apresenta uma pequena luz que vai conferindo humanidade a este ser quase sem emoção que é o banqueiro sexualmente devastador caído em desgraça depois que uma camareira negra de hotel decide acusá-lo de tê-la obrigado a chegar próximo de sexo oral com ele.

A história contada em Bem-vindo a Nova Iorque foi extraída duma crônica do noticiário policial internacional. Devereaux se inspirou no diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn. Simone está calcada diretamente na jornalista Anne Sinclair, que era esposa do banqueiro na época do escândalo. Mas, diversamente do que faz habitualmente Hollywood, Ferrara mantém uma característica de filmar em que a emoção personalíssima é muito mais importante do que a reprodução episódica do que ocorreu, o baseado em fatos reais é, em Ferrara, somente o impulso para a criação.

Alternando duas línguas com uma naturalidade às vezes espantosa, o inglês e o francês, Bem-vindo a Nova Iorque vai construindo o próprio ritual da depravação no século XXI, quarenta anos depois do olhar melancólico que um homossexual lançava por sobre a costa marítima em A doce vida (1960), de Fellini, do qual o filme de Ferrara é um sucedâneo natural. Este ritual centraliza-se muito na forma de utilização do corpo em cena. O corpo exagerado e deformado de Depardieu, exposto com autocrueldade. Mas também os corpos submetidos das meninas de programa. Contrastando com esta visão emporcalhada do físico, Ferrara traz a elegância de Jacqueline Bisset, elegância que, todavia, não deixa de aqui e ali transmudar-se em cólera.

Sabe-se que a criatividade de Ferrara continua em alta. Seu último filme, Pasolini (2014), teve uma acolhida calorosa no Festival de Veneza; segundo a enviada especial do Le Monde, Isabelle Regnier, trata-se de um “filme de beleza plástica e força política”. Bem-vindo a Nova Iorque debruça sua plasticidade sobre as operações torpes de sua personagem e resgata e atualiza muito daquela selvageria e moralidade que Ferrara vinha contrastando desde Olhos de serpente (1993), onde o corpo da pop star Madona determinava muitas vezes os mecanismos da linguagem cinematográfica.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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