Um dos Mais Belos Filmes do Mundo

Sayat Nova, A Cor da Granada (1969), dirigido pelo cineasta russo/armenio Sergei Paradjanov, talvez seja o ponto mais elevado de plasticidade criativa a que o cinema possa ter chegado

18/08/2014 09:41 Por Eron Fagundes
Um dos Mais Belos Filmes do Mundo

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Sayat Nova, a cor da granada (1969), dirigido pelo cineasta russo nascido na Armênia Sergei Paradjanov, talvez seja o ponto mais elevado de plasticidade criativa a que o cinema possa ter chegado; se Francisca (1981), do português Manoel de Oliveira, busca as origens teatrais e literárias do cinema, a despeito do rigor plástico dos planos armados por Oliveira, Sayat Nova envereda por um caminho muito diverso, a procura da essência plástica de cinema fundindo no calor das imagens elementos da escultura, da pintura e de terceiros elementos para produzir uma arte original que é cinema-escultura-pintura (Paradjanov filma-esculpe-pinta com sua câmara em delírio). Todavia, tanto Paradjanov quanto Oliveira se identificam no ponto de retorno a um cinema de antes das poluições visuais que se têm tornado cada vez mais embrutecedoras: ver Francisca e depois Sayat Nova é um exercício de reencontro com a pureza fílmica, pois seus diretores filmam suas cenas, cada um à sua maneira, como se vivessem numa era pré-cinematográfica, como se o cinema nem existisse. Um olhar (ou dois olhares) autenticamente virgem sobre o mundo.

Se Francisca versa sobre uma alma feminina romântica meio demente, é a demência que comanda os gestos tão estáticos quanto visualmente movediços do protagonista de Sayat Nova, um trovador armênio do século XVIII que de fato existiu e é aqui recriado nas cores mágicas e densamente inventivas de Paradjanov. Os aspectos de conto medieval de Sayat Nova são os mesmos de outras obras-primas do realizador, como A lenda da fortaleza de Suram (1985) e O trovador Kerib (1988); mas tudo em Sayat Novaé levado a um delírio tão perfeito que arrebata hipnoticamente o observador; somos atravessados por esta perfeição da imagem, que é uma flecha envenenada no olhar.

A afeição de Paradjanov por ícones religiosos está bem palpável em Sayat Nova, pois tudo em cena se move como um ícone, com um grafismo autenticamente espetacular. Os seres da encenação, inclusive a personagem central, parecem saliências do cenário; tudo se movimenta num compasso escultural, onde aquela seqüência dos cavalos saltitantes (seguidos dum menino que os imita) é dotada duma extravagância extraordinária, mas em Paradjanov as extravagâncias nunca se perdem, articulam-se admiravelmente, ele não é um experimentador a esmo, mas um inventor de raro senso visual. Os cacos experimentais unem-se para dar um sentido ao conjunto onde o que aparece como obscuridade é no fundo explosão da imagem. Poucas vezes alguém utilizou com tanta beleza a filmagem em espelho (talvez o alemão Rainer Werner Fassbinder em Effi Briest, 1974) como Paradjanov naquela cena do anjo esculpido que rodopia dentro do espelho como imagem não-reflexiva do que está do lado de fora do espelho. Paradjanov foi preso em 1973, entre outras coisas, por traficar ícones; na verdade, o grande tráfico de ícones está no escândalo formal que é Sayat Nova: como pode alguém extrair do mundo real formas icônicas tão perfeitas? É um roubo, certamente. Ele foi punido: retiraram-lhe das mãos seu filme e deram ao veterano Sergei Youkevich a tarefa de remontá-lo. Apesar desta tentativa de destruição, Sayat Nova é um dos mais belos poemas cinematográficos jamais feitos: filme quase concebido como cinema mudo, articulando-se muito pela imagem, Sayat Nova aduz a seus quadros um texto-off em que uma voz recita os versos de Sayat Nova; recheado de músicas e objetos de época, o filme deslumbra em toda a extensão do celuloide.

Sayat Nova, como tudo o que Paradjanov fez, é para poucos e, por isso, pouco referido, quase como um sussurro crítico. Mas é curioso observar como as invenções deste filme atuaram sobre outros cineastas mais prestigiados e mais divulgados. Certos processos de movimentação e posição das peças (incluindo-se personagens) dentro do cenário cujo instituto está em Sayat Novaforam reaproveitados por outro russo, Andrei Tarkovski, admirador confesso de Paradjanov. O cruzamento de cores, especialmente na utilização de tapetes cênicos, está inteiro em Gabbeh (1996), o mais belo filme do iraniano Moshen Makhmalbaf. Penso até que meu amado cinema do alemão Alexander Kluge, com sua profusão de gravuras e desenhos cheios de signos e simbolismos, se funda um pouco no pioneirismo de Sayat Nova, definitivamente um dos mais ricos filmes da história do cinema.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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