A Plastica Muito Particular de David Lean

A seducao cinematografica de David Lean nasce de sua plasticidade unica

07/08/2022 03:16 Por Eron Duarte Fagundes
A Plastica Muito Particular de David Lean

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I — O FILME HOJE

 

 

O realizador inglês David Lean não tem sido alçado, no meio cinematográfico, à estatura adequada a seu tamanho. Em seu tempo, muitos analistas instaram em ver seu gosto pela plasticidade do super-espetáculo, aliado às tramas romanescas de seus roteiros, concessões às plateias formadas pelo cinema americano: o sucesso comercial da época de alguns de seus filmes induzia os observadores. Há algo falso aí: o rigor cerebral britânico de Lean é uma outra coisa; clássico em suas formas, é verdade, mas nunca hollywoodiano.

A filha de Ryan (Ryan’s daughter; 1970) é um bom exemplo para se meditar nestas ilações. Apontaram-lhe o tema banal: o adultério feminino trazido pelo tédio provinciano e a intromissão de elementos inesperados neste meio rural arcaico. Dizem que o roteirista Robert Bolt se inspirou em suas leituras de Madame Bovary (1857), do francês Gustave Flaubert, para compor sua história do início do século XX que se parece com uma aventura sentimental novecentista; pode ser, mas verdade é que a atmosfera (estética, moral) de A filha de Ryan é pré-flaubertiana, tem mais relações com os aspectos psicológicos montados por Stendhal, a personagem de Lean é mais aparentada com a senhora de Rênal que com Emma.

Em todo o caso, a sedução cinematográfica de Lean nasce de sua plasticidade única: ele engolfa sua história e suas personagens nos grandes planos abertos, fotografados com intensidade por Freddie Young e musicados por Maurice Jarre com a devida grandiloquência exigida pela forma visual do filme, algo a que sua montagem lenta e precisa vai conferindo um extraordinário vigor e rigor. Sem pressa, Lean mostra inicialmente a realidade da jovem Rosy, filha dum taberneiro irlandês no tempo da I Guerra Mundial, e logo sua afeição a Charles, um professor, um homem mais velho, e ambos se casam. Mas o casamento vai desde o início sem sal. Até que surge um garboso oficial inglês, no entanto aleijado de guerra numa das pernas, e a paixão devastadora entre Rosy e este oficial se instala. Lean pinta com cores vivas o lugarejo de sua história: o louco da aldeia, que a tudo espia silenciosamente, e a sociedade hipócrita e violenta. A cena de sexo no bosque, com os seios entremostrados da atriz Sarah Miles e suas expressões de prazer sexual, é uma das peças do romantismo erótico do cinema. A agressão da multidão ao casal Charles e Rosy no fim do filme é um agudo retrato do moralismo inglês. Assim como a maneira como Lean filma a tempestade, também no fim do filme, articulando as ondas do mar, os ventos fortes e as topadas das águas nos rochedos: um deslumbramento para os olhos. O fato de o amante ter um aleijão não chega a aproximar-se de um Luis Buñuel, como se poderia pensar: mas é um condimento relacional entre os amantes, sem a perversidade de intenções de Buñuel. No fundo, o belo amante está mais próximo do louco da aldeia, também manco como ele, do que dos demais indivíduos daquela pequena sociedade: o logro é este, tomar a beleza dos bem posicionados de corpo e mente, é como se o doido da aldeia possuísse a jovem (cujos olhares, o louco e a garota, às vezes se encontram em algumas passagens narrativas) por tabela.

No caso deste comentarista, A filha de Ryan traz uma lembrança adolescente. Começo dos anos 70, serra gaúcha, cidade de Bento Gonçalves. Tímido e ainda sem conhecer mulher, a primeira vez que deparei os seios femininos foi ali, numa tela dum cinema da Cidade Baixa de Bento. O louco da aldeia se parecia com uma figura humana de minha cidade. E também o amante aleijado tinha correspondência na minha rua: um sapateiro aleijado duma perna transava, à socapa, com uma mulher casada; era o comentário murmurado na rua de minha aldeia da adolescência.

 

II- O FILME ONTEM, RECORDAÇÕES: UMA CRÔNICA DOS SEIOS

 

Corria o ano de 1971. Estávamos em aula: o dia estava tórrido, começava o ano letivo naquele mês de março, e o verão ainda respingava forte. Eu tinha quinze anos. Os hormônios se exacerbavam, mas eu ainda não conhecia mulher: era retraído demais e isto me trazia uma imaturidade sexual que contrastava com boa parte de meus companheiros de geração na serra gaúcha, na cidade de Bento Gonçalves, onde eu vivia aqueles dias luminosos de juventude e descoberta do mundo.

Então, naquele dia ensolarado, em sala de aula, na diagonal de meu olhar, hipnotizei-me com os seios entremostrados no decote duma colega. Ivete, chamava-se: morava em Garibaldi e todos os dias, junto com mais duas meninas, saía da cidade vizinha para Bento para estudar. Era a mais carnuda das meninas, eu não me cansava de olhar seu corpo naquela estação quente; tinha os seios mais volumosos que as outras colegas, todas ainda em formação desta parte da anatomia feminina que desde então é uma espécie de fetiche, inexplicado para mim. Vivendo num meio social e familiar bastante repressivo em termos de revelação do corpo, eu nunca vira seios femininos, nem entre as mulheres de minha família; não vale dizer que pelo menos em bebê os seios de minha mãe estavam diante de minhas vistas: eu já não lembrava. Não podia ver os seios de Ivete, somente aquele decote que anunciava os  seios grandes mas acima de tudo de grande e sensual plasticidade. Verão, 1971, quinze anos de idade.

Alguns meses depois desta cena em aula, eu estava num cinema da Cidade Baixa: gerenciado por padres. O filme em exibição: A filha de Ryan (1970), do diretor inglês David Lean. Durante os anos todos que têm fluído diante de mim, uma sequência do filme nunca me esquecera: aquela do sexo que os amantes fazem no bosque; e neste conjunto de planos cinematográficos que circulam entre as árvores e as duas personagens, o detalhe de parte dos pequenos e belos seios de Sarah Miles. Era a primeira vez que meus olhos deparavam seios femininos: e isto se deu numa tela de cinema, graças à câmara de Lean e o preciosismo de seus detalhes e sutilezas. Naqueles anos eu não tinha grande interesse por cinema, não me caberia o epíteto cinéfilo: a literatura ocupava-me bem mais o centro. Mas o descortinar de uns seios de mulher, depois de alguns dias de verão em sala de aula, marcou uma espécie de ruptura em meu aprendizado sentimental e erótico vida afora.

Neste outubro de 2020, a oportunidade de rever o filme de Lean, um melodrama de época feito com extrema sensibilidade, me empurrou para dentro da internet, onde imagens e sons em movimento podem ser encontrados nestes meses de jejum das salas. Rever, passados tantos anos, é antes ver, como se fosse a primeira vez: um pouco estimulado pelas lembranças de meus quinze anos e muito determinado pelo espírito crítico construído ao longo das décadas. E a cena do bosque ali estava, tal como eu a lembrava, os seios pequenos e bem torneados de Sarah, o aleijão da personagem de Christopher Jones, o rosto impassível de Robert Mitchum e o louco da aldeia em magnífica interpretação de John Mills. Todas estas personagens existiam em Bento Gonçalves: o bobo de que todos zombavam, o sapateiro aleijado da ponta de minha rua que transava com uma mulher casada, o marido inquieto mas complacente diante das escapadas de sua Bovary.

Corria o ano de 1971. Saltamos para 2020.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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