Para Expor o Declinio Intelectual do Cinema
O Declinio do Imperio Americano esta eivado das discussoes de seu decenio: a obsessao do fim do milenio e seus significados, os conflitos de genero
Rever O declínio do império americano (Le déclin de l’empire américain; 1986) expõe a fratura intelectual sofrida pelo cinema a partir de certo momento depois da década de 80 do século passado. O movimento inicial do filme é antológico: um longo travelling-para-a-frente percorre os corredores (espaços bem abertos) do que parece ser uma escola; a câmara vertiginosa é acompanhada dos acordes da música de François Dompierre (em torno dos temas sonoros de Georg Friedrich Haendel); quando cessa o movimento, o espectador dá com duas mulheres, uma segura um microfone e passa a entrevistar a outra, que parece ser uma professora de história que teoriza sobre o declínio do império atual, sob o signo americano, equiparando esta decadência aos últimos raios de sol do antigo império romano. Denys Arcand, seu realizador, é um canadense cujo cinema se inspirou muito no tipo de cinema intelectual europeu que vinha desde certos lampejos dos anos 60, especialmente aquele cinema de ideias (dialogado e muito elaborado) cujo modelo parece estar na estrutura de um filme como Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (1976), do suíço Alain Tanner. Cinema de ideias no sentido em que o escritor inglês Aldous Huxley falava de romance de ideias para seu Contraponto (1928): a construção das personagens a partir de ideias representativas, tratando de evitar que as criaturas em cena se transformem em monstros ou frios estereótipos intelectuais sem vida. Recentemente se pôde ver uma tentativa de exemplar do gênero com uma veterana do cinema europeu, A ordem do tempo (2023), rodado pela italiana Liliana Cavani. De Tanner a Arcand há uma queda de densidade. Depois, de Arcand para a Cavani, o fosso se abre mais: a Cavani esforça-se; mas está longe dos engenhos perceptivos de Arcand e a anos-luz da lucidez extrema de Tanner. No entanto, em todas estas narrativas, a ambientação intelectual cerca-se de professores, estudiosos, escritores, artistas. O declínio do império americano está eivado das discussões de seu decênio: a obsessão do fim do milênio e seus significados, os conflitos de gênero (mulheres e homens se aproximam para se entender e mais se confrontam), e é talvez o primeiro filme significativo que alude, meio de passagem, ao nascente problema da AIDS, ainda ligando-o muito à personagem dum homossexual.
A narrativa de Arcand alterna seus olhares em dois polos. Um grupo de amigos se reúne numa casa de campo e, enquanto preparam uma refeição, trocam em palavras suas experiências gerais da vida. Alternando-se com as cenas deles, as cenas delas: as mulheres, que de alguma maneira se relacionam com estes homens fora do que está sendo encenado, são vistas na academia, e, enquanto se exercitam, conversam de tudo, amor, sexo, adultério, formas livres de amar. Mais adiante, estas mulheres chegarão ao local isolado onde estão os homens, e as exposições anteriores, separadas, exacerbarão os conflitos antes vistos um pouco jocosamente. As cenas do homens que se alternam com as cenas das mulheres (a preparação da refeição e a academia) aceitam algumas inserções temporais, de episódios anteriores que explicitam as relações entre aqueles homens e aquelas mulheres.
O filme de Arcand fala de muitos declínios. Para uma revisão atual, o espectador pode pensar neste declínio: o lado intelectual do cinema, tão reclamado há pouco por um diretor como Martin Scorsese.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br