Dois Filmes nas Sombras do Sentimentalismo Intelectual
Sentimentais e intelectuais, A sombra de duas mulheres e O dia depois s?o pe?as escassas do cinema de hoje, geralmente turbulento, geralmente vulgar.
Dois dos principais filmes lançados em tempos recentes em Porto Alegre se põem dentro dum anacronismo de filmar que pode seduzir o espectador em busca de atmosferas cinematográficas que fujam aos padrões das narrativas costumeiramente vistas nos cinemas.
O francês Philippe Garrel dá-nos um de seus mais agudos e belos trabalhos em À sombra de duas mulheres (L’ombre des femmes; 2015). Filmado em preto-e-branco, concebido com um compasso fílmico que em alguns momentos chega ao êxtase, À sombra de duas mulheres põe em cena um casal de documentaristas, Pierre e Manon, em suas atividades profissionais e em seu relacionamento; narrado quase como um romance filmado, um pouco à maneira do francês Eric Rohmer, o filme traz a voz do filho do cineasta, Louis Garrel, para compor um narrador-over, que interliga com palavras as imagens, um pouco como fazia, em plena elegância, outro francês, François Truffaut, em Duas inglesas e o amor (1971). Ao introduzir uma segunda mulher, Elizabeth, Garrel torna complexo o jogo amoroso trivial por um estilo refinado de filmar. A experiência de Manon com um amante agudiza a trama sentimental de À sombra de duas mulheres.
O título original francês é “a sombra das mulheres”, um artigo, sem preposição, sem crase. E a realização é bem isto: uma meditação sobre as sombras que as mulheres podem deixar sobre um homem. Ainda que, no fim, seu amor para com a esposa se recomponha. Depois do modorrento Amantes por um dia (2017), é bom poder deparar com um Garrel anterior, mais solto, mais plasticamente deslumbrante. Cabe ainda saudar a presença nos créditos do roteirista Jean-Claude Carrière.
O sul-coreano Sang-Soo Hong surpreende em O dia depois (Geu-Hu; 2017). Se o filme dele anteriormente conhecido, A visitante francesa (2012), parecia mais o veículo para o estrelato da francesa Isabelle Huppert, este O dia depois revela um autor consciente de seu poder com a imagem. Filmado em preto-branco, como À sombra de duas mulheres, tem uma encenação plástica particular. Se no filme de Garrel eram duas mulheres, aqui o problema é com três mulheres, embora com uma delas não haja relação carnal.
O dia depois é, provavelmente, o mais rohmeriano dos filmes orientais. Longos planos fixos acompanham de perfil os diálogos das personagens, e nestes diálogos se misturam as banalidades sentimentais com questionamentos mais filosóficos. A sombra de Eric Rohmer é uma presença forte em O dia depois. Um dono duma editora rompe com sua secretária e amante e recebe uma nova secretária. Ao mesmo tempo em que sua esposa descobre seu caso e vai ao escritório e pensa que a nova secretária é que é a amante. As tensões amorosas se enovelam. Mas no novelo assomam também reflexões mais elaboradas. O realizador é, igualmente, sutil em algumas insinuações intelectuais: em várias cenas os diálogos são acompanhados, no fundo do plano, que se passa no escritório da editora, por dois retratos de escritores clássicos: o francês Honoré de Balzac e o russo Fiódor Dostoievski.
Sentimentais e intelectuais, À sombra de duas mulheres e O dia depois são peças escassas do cinema de hoje, geralmente turbulento, geralmente vulgar. Como uma espécie de plástica cinematográfica de câmara, estes dois filmes se movem com delicadeza e quase em silêncio para topar seu espaço no mundo do cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br