A Estetica do Amor Segundo Lars Von Trier

Ondas do Destino (Breaking the waves; 1996), o filme que o dinamarques Lars von Trier fez pouco antes de criar a excentricidade do Dogma 95

04/10/2024 02:14 Por Eron Duarte Fagundes
A Estetica do Amor Segundo Lars Von Trier

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Ondas do destino (Breaking the waves; 1996), o filme que o dinamarquês Lars von Trier fez pouco antes de criar a excentricidade do Dogma 95 e que de certa maneira começou a mergulhar seu cinema nalguma instabilidade estética que nascia um pouco dos modos abruptos da câmara, trata de propor uma forma  cinematográfica que fosse uma espécie de gráfico visual em movimento para ser a própria representação do amor entre um homem e uma mulher. Não um amor qualquer: um amor radical, um sentimento que radicalizasse os conflitos entre a carne e o espírito, conflitos que se estagnaram no cinema desde as revoluções psicológicas trazidas por outro cineasta nórdico, o sueco Ingmar Bergman. Não um amor entre um homem e uma mulher quaisquer: mas uma mulher de estrutura mental à parte e um homem voluptuosamente impetuoso que se deixa encantar pela mente subterrânea, fugidia, instável daquela mulher diferente.

Eles começam o filme buscando um ao outro e se casam. Ela é desvirginada por ele e depois os arroubos sexuais se sucedem. O protestantismo nórdico contracena com as situações de desejo carnal. Até que ele, Jan, sofre um acidente de trabalho. Ela, Bess, afunda-se no desespero: este desespero, natural em qualquer ser, é aguçado, ou estimulado, pelas próprias navegações mentais da personagem. Ela não sabe como reagir. Ele está numa cama de hospital: não poderá mais andar, não poderá mais fazer sexo. Então, depois da irritação inicial dele, também natural nestas situações, a cabeça do homem gira e entra em ação: propõe a ela que tenha amantes, e após os coitos vá visitá-lo no hospital e relate a ele estas aventuras inundando-as de detalhes eróticos; é uma forma, assevera ele, de manterem, Jan e Bess, sua ligação antiga, a carne então parece ressurgir pela mente, que é espírito, o espírito sugere, a carne trepida apesar das limitações físicas. Ela, passada uma rejeição inicial à ideia dele (natural, a formação protestante, o amor de Bess por Jan), começa a fazer as sacanagens com homens e contar a ele. O diretor é frio e agudo nas descrições de tudo o que acontece diante de sua implacável câmara.

Bess, no silencioso quarto, desde o início, conversa com o Criador, pedindo-lhe coisas, ela faz seus pedidos religiosos e em seguida ela mesma, alterando a voz como se fosse o Outro, dá as respostas de Deus. É parte de sua extravagância mental: demente, como vários seres de Von Trier. Quando Jan demora a vir para casa, ficando dias preso na plataforma, ela suplica ao Espírito Supremo que lhe traga Jan; ele pergunta se ela tem certeza do que pediu; pouco depois do pedido, Jan está de volta: porém inválido. Quando Jan quer que Bess transe com outros, ela questiona Deus sobre isto; reafirma seu amor; Deus diz que ela tem de provar esse amor. Os diálogos doido-místicos de Bess espalham-se pelo filme com uma certa dureza formal: é a estética instável do amor em Von Trier. É a partir desta conversa com a Criação que o realizador vasculha a questão dos gestos da personagem entre a satisfação dos desejos e a culpa pelo enviesado destes desejos, suas linhas tortas.

Produção internacional que contou com capitais dinamarqueses, franceses, holandeses, islandeses, suecos, noruegueses e espanhóis, Ondas do destino trouxe a primeira aparição da atriz inglesa Emily Watson no cinema: originalíssima, ela corresponde à autenticidade da própria narrativa de Von Trier. O sueco Stellan Skargärd é seu parceiro de cena: também num fluir interpretativo notável. E a intérprete inglesa Katrin Cartlidge, uma voz de consciência entre as personagens centrais, naquele seio protestante, é outra sedução da narrativa. Melodrama entre o frio e o mórbido, Ondas do destino, revisto depois de tantos caminhos de sombras percorridos pelo gênio dinamarquês, é hoje um holofote para a interpretação de uma das obras mais fortes do cinema feito hoje. Numa sequência num templo, Bess ouve uma homilia em que o religioso alude à necessidade do amor incondicional à palavra; Bess espanta-se e, falando ao pastor, o contradita: “Como se pode amar uma palavra? Ama-se a um ser humano.” A cena traz referência ao clássico A palavra (1955), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer; mas é um pouco mais, é o centro de Ondas do destino, uma discussão sobre estética e verdade ou de como a estética pode, ou não, representar a verdade.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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