A Lingua e Seus Espantos: A Palavra como Sombra
Joao Cajueiro, de seu mundo incognito e suspeito, atravessa o cotidiano do vilarejo


Quanto mais se penetra na literatura criada por Corisco Moura, mais a capacidade de entranhar-se na originalidade de seu verbo é depurada. O homem sem sombra (2025) é seu novo romance: cada vez mais o autor refina as possibilidades da palavra de fazer nascer, na página, os sentimentos e as situações humanos. “A noite se arrastava quando a janela bateu. Passava das onze horas. Não conferiu o relógio, mas eram onze, sim, ou quase isso. Aquele toque leve e histérico era a coisa menos importante do mundo. No entanto, como não tinha sono, sua atenção concentrou-se no soluço da madeira.” Corisco não chega a ter as estridências metafóricas de José Geraldo Vieira mas igualmente não se contenta com as trivialidades do contar em literatura.
“João Cajueiro voltou”, diz alguém a certa altura. Um homem morto ou dado como morto retorna à vida em que viveu. “E a memória se alargava reinventando o mundo”. É a personagem que conduz a quase indelével ação narrativa. Uma ação feita de espaços de estranhezas: de interioridade. “As palavras pulavam gordas da boca”. O fascínio vem da intensidade poética do texto que por sua vez emana daquilo que Corisco tem de mais belo como escritor, a invenção duma imagem (inesperada) que transcreve o mundo. “Um vento forte eriçou as copaíbas e os ingás vizinhos. O mato murmurou sua réplica: cada caule dobrou na mesma medida. Logo depois, um sopro beijou arrependido o chão. As palmeiras amansaram, estendendo o pescoço.”
João Cajueiro, de seu mundo incógnito e suspeito, atravessa o cotidiano do vilarejo. É ele quem traz as palavras como espantos para alucinar a realidade e torná-la mais tensa e inventiva. “Ajeitou o travesseiro, obnubilado, e voltou a dormir. Havia ainda muito a se explorar.”
Como uma correnteza, título de seu romance anterior, tudo o que deparamos em O homem sem sombra se parece às vezes com uma catadupa: onde as palavras são sombras do real, por isso podem espantar o leitor quando manejadas por alguém com as insatisfações estéticas dum esgrimista como Corisco Moura.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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