Uma Terra De Escritores

Com sede no Armazém da Utopia, o Armazém 6, no Cais do Porto, o Festival de Cinema do Rio 2014 trouxe mais de trezentos filmes para a disposição dos cinemaníacos cariocas e de outras plagas que aportassem ali

13/10/2014 09:22 Por Eron Duarte Fagundes
Uma Terra De Escritores

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Rio, 07.10.14, terça-feira

Ao apresentar o realizador português João Botelho diante do público que se deslocou para o Instituto Moreira Salles, que fica além da Lagoa Rodrigo de Freitas, o crítico brasileiro José Carlos Avellar lembrou que a literatura era familiar ao cinema de Botelho; tomando a palavra, Botelho fala de seu cinema como um jogo de artifícios, como algo que não deve ser confundido com a vida. Os maias, cenas da vida romântica (2014), o filme que Botelho buscou entre os vários filmes que o romance de Eça de Queirós ofereceria, confirma as duas assertivas, mesmo que o cinema de Botelho, sendo um sucesso de público em Portugal, seja praticamente ignorado pelos distribuidores brasileiros e não se possa dizer nada aqui do que Botelho fez antes pelo cinema. Primeiramente, fica claro, desde a cena inicial, que o cineasta não é um neófito em adaptar um texto literário para a tela: mantendo a força das intenções e dos episódios originais básicos, Botelho faz de seu Os maias uma questão cinematográfica essencial, o cinema literário que não é somente uma ilustração das palavras na página escrita mas detém uma energia visual própria que se vai construindo com a engenhosidade duma construção de quadros  que se movem com grande beleza fílmica (a propósito deste Os maias, pode-se pensar no que fez o francês Eric Rohmer, há anos, em A marquesa d’O, 1976, também uma adaptação literária de época).

A tela branca como equivalente da página branca de Mallarmé:
deve ser preenchida por filmes num Festival de Cinema,
como este do Rio, em 2014. Foto:Marilene Fagundes da Silva

 

Botelho filma, de certa maneira, seu fascínio por algumas obsessões de Eça que são também obsessões de Botelho, um cineasta na terra dos escritores. Uma visão de Portugal decadente, pós-romântico, verborrágico e hipócrita em sua verborragia; uma destas personagens anacrônicas, cediças, desatualizadamente castiças é o Alencar, um poeta apanhado em suas metáforas frágeis pela brutalidade do naturalismo (aliás, dizem que o nome Alencar é uma ironia lusa para com a própria literatura brasileira, que naqueles anos ainda venerava os exageros do ficcionista cearense José de Alencar). Botelho mantém em seu filme esta caricatura crítica que é o Alencar de Eça. Mas é João Ega a criatura que encarna o sarcasmo virulento do narrador. Lá pelas tantas, Ega diz: “Sinto-me como se a alma me tivesse caído à latrina.” Momentos mais adiante, quando alguém evoca a frase de Ega, altera-lhe a construção: “Caiu-me a alma na latrina”. Duas alterações básicas. Substitui-se o pretérito mais-que-perfeito composto (“tivesse caído”, Ega se refere à queda de sua alma como um passado anterior ao passado) pelo passado simples (“caiu-me”, o citador aludindo à queda como um passado instantâneo, de há pouco, quase um presente). A outra alteração é a sintaxe do verbo “cair”: no primeiro caso usa-se a preposição “a” (“tivesse caído à latrina”), no segundo damos com a preposição “em” (“caiu-me na latrina”). Aparentemente seriam sutilezas que não alteram muita coisa. Mas Portugal, lembremos sempre, é uma terra de escritores, assim como a Holanda o é de pintores: estas diferenças na escrita acabam fazendo muito sentido, mesmo quando pintadas por um cineasta que tenha lá sua herança pictórica, como se vê neste Os maias. Devemos sempre, nos filmes portugueses, atentar sobremaneira para as palavras; como disse João Botelho ao falar brevemente de si e de seu filme, os portugueses se expressam pelas consoantes (como os franceses, penso eu) enquanto os brasileiros se erigem em vogais.

Estas anotações que faço, embora se afastem do eixo central do filme de Botelho, acabam casando-se no propósito crítico de ajudar a entender como se edifica um filme como Os maias, cenas da vida romântica, que também se poderia chamar “Os maias, cenas de Eça no cinema de João”. Tratando-se duma produção entre Portugal e Brasil, a realização traz alguns atores brasileiros. Num dos papéis centrais, a irmã incestuosa é vivida com grande intensidade, simulando um sotaque intermediário entre o brasileiro e o português, a brasileira Maria Flor.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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