Escritores Gaúchos no Século XXI
Veja no texto de Eron Fagundes sobre dois escritores gaúchos: "ambos escrevem um pouco com a volúpia e a soltura de quem filma"
Paulo Scott nasceu em Porto Alegre mas vive atualmente no Rio de Janeiro. Daniel Galera nasceu em São Paulo, mas sua formação é porto-alegrense, gaúcha. Ambos estão entre os escritores gaúchos mais estimados pela crítica. Scott chegou a ser filmado pelo cineasta gaúcho Gustavo Spolidoro, assim como Galera teve um de seus textos transformado em filme pelo realizador paulista Beto Brant. Ambos escrevem um pouco com a volúpia e a soltura de quem filma; incorporam em sua literatura duas coisas do cinema, a espontaneidade (desejada pelas letras desde o modernismo do começo do século XX) e a superficialidade (paradoxalmente defendida e execrada).
Habitante irreal (2011) é um dos mais recentes romances de Scott. O cenário e a memória são porto-alegrenses. Scott busca a linguagem das ruas: a sintaxe direta, o vocabulário trivial. As coisas se amontoam na prosa de Scott: o conjunto se desorganiza facilmente. Mesmo se passando quase inteiramente na província (“a Praça da Matriz, a catedral, os prédios históricos, os residenciais e os de escritórios”), Habitante irreal não descarta investir no exílio, os “nomes em vão”, jogar ao ar frases como “perdeu o hábito de falar português” (algo diferente da posição do romancista luso António Lobo Antunes, que dizia de sua incapacidade de ficar muito tempo sem falar a língua-mãe), situar a partir deste exílio (dum país, dum idioma, dumas referências) o processo histórico em que está (“aprovação de Margareth Thatcher entre os britânicos”, “Steven Soderbergh, de vinte e seis anos, rodou o filme sexo, mentiras e videotape em cinco semanas gastando pouco mais de um milhão de dólares”, “o muro de Berlim não existe mais”). Scott trilha um pouco o caminho da estranheza de viver de outro autor gaúcho, João Gilberto Noll, que não por acaso identificou em Scott o namoro com o insólito, este mesmo insólito com que Noll está casado há anos. Mas falta a Scott a sinuosidade criativa da linguagem e da narrativa de Noll: o peso poético da novelística de Scott é muito mais baixo que aquele que Noll porta.
De outra banda, Cordilheira (2008) é uma obra recente de Galera. Pertence à série “Amores expressos” encomendada pela Companhia das Letras e passa-se em Buenos Aires. É narrado em primeira pessoa por uma mulher, uma escritora brasileira que está na capital argentina para o lançamento da tradução de um livro seu: Galera, pode-se dizer, escreve melhor do que Scott. Mas a narrativa seguidamente soa falso: não a sentimos como se estivesse sendo escrita por uma mulher. Capitu no Brasil e Ema Bovary na França, estas duas clássicas da devassidão oblíqua internacional têm uma verdade feminina que Galera está distante de obter. Se o realismo de Scott se desarruma, a tendência levemente fantástica de Galera se perde no artificialismo incongruente. Arriscando um pouco, eu diria que Galera tentou um diário íntimo cujo modelo varia entre o antigo francês Choderlos de Laclos e o gaúcho Liberato Vieira da Cunha em O homem que colecionava manhãs (2004), mas derrapou feio ao tentar modernizar o classicismo de Laclos e Vieira da Cunha.
Há, pois, algo de muito insatisfatório na travessia perpetrada por Paulo Scott e Daniel Galera, uma literatura gaúcha sub-reptícia e elogiada nos dias que correm.
Obs:
HABITANTE IRREAL (2011). De Paulo Scott. Rio, Objetiva, 2011. Notas: Observar, a pgs 108 e 109, a evocação dos momentos políticos vistos do exílio.
CORDILEHIRA (2008). De Daniel Galera. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. Nota: pg 20. Descida em Buenos Aires: pgs 30 e 31.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br