A Suavidade Inquieta de Bresson

Uma Mulher Suave é a subversão do rigor clássico donde promana o estilo de filmar de Robert Bresson

28/04/2015 12:37 Por Eron Duarte Fagundes
A Suavidade Inquieta de Bresson

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A precisão, a secura e a agudeza da linguagem cinematográfica do francês Robert Bresson topa na sequência de abertura de Uma mulher suave (Une femme douce; 1969) um modelo de corte e montagem em que o real e o abstrato, o material e o espiritual se fundem indicando os próprios caminhos da ideologia estética do cineasta; é um ponto alto de sua maneira de filmar e um de seus achados fílmicos mais apaixonantes. Depois dos créditos iniciais, que estão sublinhados por imagens e ruídos do trânsito duma metrópole européia (Paris) do fim dos anos 60, eis a sequência: são quatro planos despojados e precisos que servem a descrever o suicídio da protagonista do filme de Bresson, mas este “descrever” ultrapassa os aspectos físicos e se torna interioridade desde estas aparentemente distanciadas e materiais imagens iniciais. No plano de abertura, a câmara está fixa diante duma porta de vidro, salienta-se na textura da imagem a maçaneta da fechadura da porta; neste mesmo plano surge a mão da empregada na maçaneta, ela abre a porta e entra. No plano seguinte, mais tenso em sua aparente tranquilidade de filmar, vemos a cadeira que se embalança e a mesa que se inclina derrubando um vaso. Segue-se o plano do xale que esvoaça no ar: a câmara, abandonando sua fixidez, segue o voo do xale prédio abaixo. E o último plano começa fixando uma freada brusca de dois carros, depois o motorista do carro da frente desce, caminha (e a câmara com ele), o motorista (a câmara está acompanhando seus pés desde a descida do carro) para diante do corpo da mulher espatifado no chão, a imagem final do plano é a visão aguda e incisiva do corpo da mulher diante dos pés do motorista.  No fim do filme, a sequência do suicídio vai retornar, mas do ponto de vista da suicida, daquilo que ocorre dentro do cenário do suicídio. A quantidade de planos e observações é maior, mas o que interessa é atentar para certos detalhes que justificam o caráter da protagonista: um plano do olhar enigmático da protagonista como quem não está nem aí para a câmara (é a descaracterização do drama imposto pelo modelo de interpretação exigido por Bresson de seus intérpretes), a este plano próximo se contrapõe um plano médio dela dentro do espelho (o plano anterior era ela diante do espelho, agora é sua imagem no espelho), o ato da protagonista de baixar os olhos, em seguida seu levantar-se, espiar o movimento lá fora pela vidraça, e novamente a empregada movendo a maçaneta (agora a câmara está do lado de dentro e não, como no início, do lado de fora), o xale, a cadeira que se embalança, o vaso caindo da mesa: mas o corpo espatifado não retornou, é neste final uma elipse, assim como no início a elipse era o salto da mulher pela janela (ou sacada). Nos planos finais o que aparece em evidência são certos gestos tensos entre a vigilância da empregada observando as estranhezas de sua patroa e o ato da protagonista de ocultar-se da empregada, neste ato (ou atos) ela prepara seu espírito para atirar-se.

O que acontece entre estas duas sequências (a de abertura e a de fechamento) de Uma mulher suave é uma longa cena de cadáver reflexivo. O cadáver da mulher está estendido na cama. Seu marido, acompanhado pela silenciosa atenção da empregada (parece que ela só fala quando lhe diz que quer uma folga após o funeral), faz uma retrospectiva de seu relacionamento com a protagonista. O que se evidencia nesta retrospectiva é a diferença de caracteres entre os dois. Numa cena antes mesmo do décimo minuto de filme, ele fala de Goethe, especialmente de Fausto, há uma ligeireza superficial em sua utilização do pensamento do alemão, ele pergunta a ela se leu Goethe, ela responde que nunca leu o escritor germânico com cuidado. Ou seja, ela busca uma profundidade que escapa a ele: esta sua inquietação que dificulta a existência e o relacionamento. Mais adiante, ao verem uma encenação de Hamlet, ela se envolve intelectual e emocionalmente com o texto, enquanto ele parece distanciado, alheado, vazio. Quase ao final, enquanto ela sobraça alguns volumes de livros, ele está fazendo suas palavras cruzadas.

Uma mulher suave é a subversão do rigor clássico donde promana o estilo de filmar de Bresson. De uma certa maneira, a tranquilidade de imagem é também perturbada pelos barulhos de trânsito das imagens iniciais do filme e que surgem amiúde na faixa sonora mesmo quando a câmara está dentro do apartamento (os ruídos externos que atravessam as paredes ou numa cena uma corrida de automóveis vista na televisão). Distanciando-se muitas vezes de seus frios intérpretes (Dominique Sanda e Guy Frangin, o casal central), a câmara de Bresson em vários momentos afasta-se dos rostos ou dos troncos das personagens, preferindo deter-se excentricamente nos membros inferiores, especialmente no início do filme; com a fotografia enxuta e direta de Ghislain Cloquet e a música de Jean Wiener que se cruza diegética e não-diegeticamente em cena, Bresson é um mestre da interligação de imagens para sugerir estados de espírito a partir de sua profundidade plástica.

 

APÊNDICE:

[A cortante novela russa Uma criatura dócil (1876), de F. M. Dostoievski, segundo tradução brasileira de Fátima Bianchi, foi publicada ao longo de novembro de 1876 na revista “Diário de um escritor”, embutida no jornal “O cidadão”. A febril imaginação de Dostoievski partira do caso real do suicídio de Maria Boríssova, jovem costureira que saíra do interior para tentar a sorte em Moscou e, caindo na miséria, suicidara-se, jogando-se do alto de um prédio, abraçada com o ícone de uma Virgem Maria; a notícia foi veiculada pelo jornal “A voz”, de São Petersburgo, e atraiu a magnífica atenção de Dostoievski.

Na introdução de sua novela, chamando esta introdução “Do autor”, Dostoievski se desculpa com os leitores por fugir ao ramerrão de seu “Diário” e ali incrustar uma novela. Adjetiva a novela de “fantástica”. “Imaginem um marido, em cuja casa, sobre a mesa, jaz a própria mulher, suicida, que algumas horas antes atirou-se de uma janela.” E Dostoievski imagina e elabora a tagarelice perplexa deste marido. E fica o escritor pensando a quem este marido se dirige: quem o ouve? Dostoievski alude a um ouvinte invisível: o homem talvez fale para o nada, ou para suas próprias justificativas. Dostoievski pensa também num juiz ouvinte: alguém que vai julgar aquelas palavras do marido e a partir delas a mulher e o próprio relacionamento do casal e seus problemas insolúveis ou que só tiveram uma solução pela metade (para ela) no suicídio da mulher. E finalmente Dostoievski estabelece que o marido está dirigindo-se a um estenógrafo, que anota tudo; e é a esta presença (invisível) dum estenógrafo que Dostoievski atribui a característica fantástica de sua narrativa. Como se não bastasse o cadáver duma mulher diante do qual um homem fala interminavelmente do relacionamento dos dois.

O texto de Dostoievski começa com reticências e um “pois é”. O estenógrafo não está em cena: é o invisível, ou o leitor. Quando o francês Robert Bresson adaptou a novela para o cinema, resolveu o problema do interlocutor lançando mão duma silenciosa empregada que ouve as lamúrias do marido; como testemunha da vida conjugal deles, a empregada seria a ouvinte ideal dele. No livro a empregada, que se chama Lukéria, não tem muito peso, não abafa a subjetividade do marido-narrador, o subterrâneo-barroco de Dostoievski aprofunda amedrontando como sempre; no filme a empregada, rebatizada de Anna (seu nome só ouvimos chamar bem adiante no filme), é uma peça calada que se articula narrativamente e ajuda ao verdadeiro principal narrador, que é a câmara de Bresson onde os narradores acessórios (o marido que lança as frases-over, a empregada que observa, a esposa que vai suicidar-se) se instalam completando uma complexidade depurada e despojada, longe dos largos gritos dostoievskianos, mas buscando quase as mesmas tensões espirituais.

O tema da agressividade psicológica é sempre devastador em Dostoievski. No capítulo 6 da novela, “Uma recordação terrível”, o narrador do escritor russo (que se mimetiza com a personagem do marido, o que não chega bem a acontecer no filme de Bresson) se dedica a esmiuçar uma lembrança terrível do relacionamento: um belo dia ele acordou com a clareza do dia no quarto e deu com uma cena que o perturbou, naturalmente, ela se aproximou dele com revólver em punho, ele fingia dormir, ela encostou o revólver em suas têmporas. A cena descrita no livro revela que num momento fugidio mas implacável ele abriu os olhos e os olhos de ambos os cônjuges se cruzaram: é o ponto de agressividade máxima topado pela mente dostoievskiana, o odioso desencontro do casal se estabelece nestes signos. No filme a coisa é um pouco diferente, embora as simulações sejam idênticas: ele não chega a abrir os olhos diante dela e só o faz quando ela se retira do quarto. Digamos que a agressividade mental em Bresson existe, mas é mais esgueirada, dado seu temperamento estético mais contido.

O filme de Bresson não é um filme de época: moderniza os cenários, com o trânsito contemporâneo, a televisão, o cinema. Inclui uma encenação de Hamlet (um trecho do ato  final da peça), de Shakespeare, que não está no original literário. Bresson utiliza o texto de Dostoievski como anotações para aquilo que bressonianamente quer expressar. Bresson seria como o estenógrafo que quase um século antes Dostoievski pensara como o “ouvinte invisível” de seu narrador infortunado. Na primeira fala (uma das duas falas dela) da empregada no filme, ela diz ao patrão que após o funeral quer uma semana de folga; no livro, o narrador revela que a empregada acabou de dizer que não continuará morando ali e após o enterro ela irá embora. Bresson substitui a demissão pela folga, ou seria a folga somente um eufemismo para o ato demissionário que se seguiria?

O certo é que a criatura dócil, tanto no livro quando no filme, se matamorfoseia em uma tirana, um algoz da alma de quem o cerca. O suicídio— em Dostoievski ou em Bresson— é visto como um ato de crueldade mais do que um ato de desespero. São sistemas artísticos diversos (Dostoievski e Bresson) que chegam a uma profundidade imbatível em seus meios de expressão.]

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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