O Estranho Mundo de Robert Bresson
O universo de linguagem do cineasta frances Robert Bresson se opoe ao estilo de escrever do romancista russo Fiodor M. Dostoievski
O universo de linguagem do cineasta francês Robert Bresson se opõe ao estilo de escrever do romancista russo Fiódor M. Dostoievski. Bresson: despojamento, contenção. Dostoievski: delírios, exageros, transbordamento psicológico e verbal. Mas o culto homem de cinema Bresson se interessou pelo universo moral de Dostoievski; os agudos paradoxos éticos de Dostoievski estão dentro do cinema de Bresson, vazados numa articulação formal feita só de rigor e da precisão dos movimentos. Pickpocket (1959) não é a filmagem de algum texto de Dostoievski, sua trama nada tem daquilo que Dostoievski pôs em seu romance Crime e castigo (1866), mas uma ideia central de Pickpocket reproduz o espírito do romance. Michel, a criatura central do filme de Bresson, é um batedor de carteiras; seu processo de esgueirar-se nos cenários para fazer seus roubos é descrito numa espécie de balé de planos cinematográficos que equiparam a plasticidade do cinema a algo como uma acústica musical. Mas Bresson vai além de seu preciosismo de estilo, vai ao fundo moral das ações da personagem. Numa cena do início, num café, dando com o inspetor de polícia, Michel, secundado por seu amigo Jacques, expõe sua tese: “Est-ce qu’on ne peut pas admettre que des hommes capables, intelligents, et donc indispensables à la societé, au lieu de végéter toute leur vie, soient dans certains cas libres de désobéir aux lois?” Podem os homens superiores em certos casos desobedecer às leis? Assim como, em Dostoievski, poderia Raskólnikov matar uma velha inútil que o infernizava com a dívida do aluguel. O inspetor pergunta, em Pickpocket: “—Et qui distinguera des autres ces hommes supérieurs?” Michel não hesita: “—Eux-mêmes, leurs consciences.” A inteligência pode substituir a moral? Artistas complexos, Bresson no cinema e Dostoievski na literatura não tratam objetivamente este dilema filosófico; a aparente objetividade de signos de Bresson (os modelos naturais de intérpretes, o quase documentário das ações cotidianas) vai ter a uma estranheza de relações entre as imagens que pouco a pouco se vai revelando até o gesto final, as carícias entre grades entre Michel e Jeanne, as possibilidades de redenção de Michel e seu mal pela estima duma mulher. Mas nada é simples nesta aproximação bressoniana entre dois seres. Michel é finalmente apanhado pela lei, a despeito de sua tese do homem superior, livre para os delitos; Jeanne, uma ex-cuidadora da mãe de Michel, vai visitá-lo na prisão; tarda a voltar em nova visita, Bresson filma a angústia da espera de Michel, Jeanne volta a ver Michel entre as grades da prisão, os planos de carícias entre os dois através das grades se fragmentam incognitamente. Costuradas as imagens pelo diário de Michel (aparecem as imagens do texto escrito sobre as quais a voz-over diz as palavras), nesta sequência final o anseio de Michel é dito: “Oh Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.” E nesta oração o espectador topa com uma das portas do estranho mundo de Robert Bresson.
P.S.: Bresson visitou a literatura de Dostoievski de maneira direta em dois filmes, Uma mulher suave (1969) e Quatro noites de um sonhador (1971). Mas mesmo aí, fazendo o roteiro seguir mais de perto o texto do escritor, a liberdade e a personalidade artísticas de Bresson impõem seu jogo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br