Os Mistrios de Bresson
Quatro Noites de um Sonhador, de Robert Bresson, to direto quanto pode ser uma folha branca onde pousa o olhar humano
A contenção de formas em Quatro noites de um sonhador (Quatre nuits d’un rêveur; 1971), rodado pelo francês Robert Bresson a partir da novela Noites brancas (1948), do ficcionista russo Fiódor Dostoievski, se ajoelha nos milhos cinematográficos para manter uma inteireza e uma pureza que remetem aos princípios bíblicos do cinema. É a segunda incursão direta de Bresson no universo literário de Dostoievski; a anterior foi a obra-prima Uma mulher suave (1969), embora se possa lembrar que também o fundamental Pickpocket (1959) teve uma inspiração dostoievskiana não-creditada.
Noites brancas, obra inicial e tateante de Dostoievski, já fora filmada pelo italiano Luchino Visconti em 1957 com o mesmo título do livro. Sem embargo de utilizar os mesmos elementos de trama e argumento de Dostoievski e Visconti, Bresson impõe sua nota mais rigorosa e atinge em seu filme uma profundidade que nem a novela do russo nem o filme do italiano chegam a alcançar; as asperezas de imagens de Bresson tendem a uma plástica seca, quase em carne viva para se aproximar dos liames emocionais de suas criaturas. Escuro e obscuro, Quatro noites de um sonhador é tão direto quanto pode ser uma folha branca onde pousa o olhar humano: as frases e os enquadramentos de Bresson parecem simples mas perfuram estranhos mistérios estéticos; como nos textos do tcheco Franz Kafka, a simplicidade não vem para simplificar mas para esconder certos significados mais abissais.
Diversamente dos intérpretes de Visconti (Marcello Mastroianni, Maria Schell e Jean Marais), os “modelos” que vivem as personagens de Bresson exacerbam a desglamurização dos gestos de ficção; Guillaume des Forêts e Isabelle Weingarten fazem encenações rígidas, quase inexistentes, o que acentua o enigma bressoniano.
A história de um “amigo” apaixonado que vê sua amada estar apaixonada por outro que no final vem roubá-la mesmo é clássica, em signos e estruturas. Mas o perfeccionismo de Bresson está em dar uma forma absolutamente nova a esta estrutura anacrônica que, lendo o livro de Dostoievski ou vendo o filme de Visconti, pode incomodar-nos. Bresson supera a matriz sem a abastardar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br