A Poesia É a Leitura: Três Poetas

O poema se forma à medida que as palavras e suas sintaxes se estruturam dentro do leitor: Rimbaud, Maria Carpi, Luiz de Miranda

25/11/2015 11:56 Por Eron Duarte Fagundes
A Poesia É a Leitura: Três Poetas

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

“Reler os poetas que amamos na juventude pode ser o mais das vezes uma prova. Se as curiosidades do espírito vão a outros lugares, se o gosto se tornou mais severo, o coração no entanto não mudou: pela verdade que exprimem, aqueles que nos emocionaram uma vez, não cessam de nos emocionar.” (Émile Henriot, numa introdução crítica à obra do poeta francês Alfred de Musset)

“Relire les poètes qu’on a aimés dans sa jeunesse peut être souvent une épreuve. Si les curiosités de l’esprit vont ailleurs, si le goût este devenu plus sévère, le coeur pourtant n’a pas changé: par la vérité qu’ils expriment, ceux qui l’ont ému une fois ne cessent pas de l’émouvoir.”

 

Ler é um poema. O poema se forma à medida que as palavras e suas sintaxes se estruturam dentro do leitor. A leitura de um romance do francês Marcel Proust ou do brasileiro José Geraldo Vieira é um poema intenso: o verbo delira. À poesia de ler, pois.

O francês Arthur Rimbaud é a intensidade da poesia em sua potência plena. Relendo agora seus versos na língua em que o poeta os escreveu, constata-se que poucos podem disputar-lhe a exasperação e o rigor de escrever em poesia. Além de sua literatura, temos a vida de Rimbaud diante de nós como um poema de um demente: um aventureiro da emoção. Claude Jeancolas, em sua introdução a Les manuscrits d’Arthur Rimbaud (2012), capta o espanto de todos nós: “Nossa abordagem de Rimbaud é ambígua e complexa. À simples pronúncia de seu nome, um rosto aparece, como se o conhecêramos desde sempre. Cabelos desordenados, lábios finos, contraídos, duros, olhar claro, puro, frio, intransigente... Somos nós tão familiares para com ele? Ele nos ignora e esta ignorância nos maltrata. Somos nós tão masoquistas? Permanecemos fascinados e submetidos. Que vê ele?” (NOTA 1). Aí está, nas orações de um francês, a junção de aproximação e afastamento que todo leitor de Rimbaud experimenta. Rimbaud é por excelência o poeta que desbanca toda nossa veleidade poética primitiva: disse-me certa vez o escritor gaúcho Décio Freitas que, como todo mundo, quis na adolescência cometer uns versos, mas, ao ler o que Rimbaud escrevera aos dezessetes anos, desistiu: se alguém podia escrever aquilo com somente dezessete anos, a poesia lhe estava fugindo. Décio optou por ser historiador.

Rimbaud, pois. Um jovem francês em delírio que escreveu praticamente toda a sua obra até os dezessete anos. Depois desta idade, desistiu da literatura: buscou aventuras mais físicas. E deixou para os pósteros a aventura de ler, a aventura de fazer da leitura poemas: reescrevemos, delirados,  em nossas mentes seus versos. Jocoso como todo rapaz, tornou-se um caso sério da literatura francesa. Mesmo que, em uns certos versos, ele tenha dito que “não se é sério quando se tem dezessete anos” (NOTA 2). Rimbaud assopra-nos no ouvido: “Se os tempos voltassem, os tempos que vieram” (NOTA 3). Com seu apuro sintático, o adolescente faz uma rima temporal, uma rima com o uso do tempo verbal na língua: no original francês topamos o imperfeito do indicativo, “revenaient” (3ª pessoa do plural), que é o que se usa com a partícula condicional “si”, seguido na frase seguinte do passado composto (que em francês corresponde a nosso pretérito simples). Os tempos vieram, mas não voltaram. Que ambíguo, que complexo! Como o rosto debochado e delirante que a posteridade herdou do poeta. No verso seguinte o visionário antecipa o esgotamento do humano: “Pois o Homem acabou! o Homem interpretou todos os papéis!” (NOTA 4). Passados tantos anos, Rimbaud é também o homem mau do século XXI. E podemos exclamar com ele: “Eu amo desse objeto o sabor desolado.” (NOTA 5).

Da leitura francesa em seu pico, saltamos para dois poetas gaúchos de primeira água.

Maria Carpi nasceu em Guaporé, serra gaúcha, em 1939. Tem larga experiência poética. O que se transubstancia no rigor de seus versos, como emana de seu livro O herói desvalido (2006), editado pela Bertrand Brasil. Carpi é uma artista que talvez não desanimasse tanto a inveja de Décio Freitas, que se desestimulou de fazer versos quando leu Rimbaud e descobriu que aquilo fora escrito por um menino de dezessete  anos. Mas não nos apressemos: a simplicidade aparente, sua transparência natural, do texto poético de Carpi esconde veios complexos e até ambíguos.

“Quando a grande mãe cobre / os seios com a lama do fundo / dos rios, singras a líquida chaga  / ao ruído da purgação”, anota a escritora de poemas. E ainda nos diz: “Nunca acabar de bater à porta, nunca acabar de a porta arrombar, nunca acabar de ser a porta”. É a sintaxe que novamente me ocorre como a inteligência sensível do poeta: o poeta bate à porta (a ação do poeta, sujeito, sobre um objeto indireto, ligado ao verbo por preposição), o poeta arromba a porta (das imagens, das construções? o poeta age sobre um objeto direto, arromba a porta, nada de preposição), finalmente o poeta é o predicativo do sujeito, de si mesmo, o poeta é (verbo de ligação) a própria porta. No início do poema, adverte-se: “Este é o sinal.”

Luiz de Miranda nasceu em Uruguaiana, nossa fronteira-oeste, vizinhando com a Argentina, pela cidade de Paso de los Libres. Seu Poesia reunida (1992), editado pelo Instituto Estadual do Livro, do Rio Grande do Sul, é a suma de sua produção poética: e apresenta sua grandeza em poemas, certamente. Diferentemente de Maria Carpi, a poesia de Luiz transborda: as imagens se multiplicam e tudo parece mais alucinatório. Não chega à demência europeia novecentista de Rimbaud: trata-se muito mais de um vagabundear pela campanha gaúcha, mas com uma carga estética de encher-nos os corações. “Vaga a vulva do teu corpo” é um verso do poeta que tenta fazer na mulher a penetração pela palavra, uma evocação silábica que remete ao simbolista catarinense Cruz e Sousa. No entanto, o amor foge do poeta: “Depois teu silêncio / é uma estrela deserdada.” No entanto, o sentimento amoroso entrevisto por Luiz de Miranda está além das linhas individuais, percorre um caminho político-metafísico. “Se te ausentas de mim / como quem se ausenta do ar / na leveza de um voar / e num dia de abandono / simplesmente pode me matar.” Um desespero existencial? Miranda é igualmente um homem de versos generoso: “Sinceramente este poema / é mais teu que o lês / o leitor de poesia / é sua própria alma / sem ele a vida / é quase nada / e as palavras teriam / apenas o cheiro de solidão / de sua criação.”

Luiz de Miranda fecha o círculo que me trouxe de Arthur Rimbaud. A poesia não é propriamente o que está na página escrita, mas o que desta página escrita foi despejado no leitor. Mais ainda quando se lê em língua estrangeira, recriando o aprendizado desta língua de uma maneira menos evidente que é para um leitor nativo. Ou toda leitura de poesia é feita numa língua estrangeira e também estranha ao senso comum?

 

NOTA 1. “Notre rapport à Rimbaud est ambigu et complexe. À la seule prononciation de son nom, un visage paraît, comme si nous l’avions toujours connu. Cheveux em désordre, lèvres fines, serrées, dures, regard clair, pur, froid, intransigeant... Sommes-nous si familier? Lui, nous ignore et cette ignorance nous maltraite. Sommes-nous si masochistes? Nous restons fascinés e attachés? Que voit-il?”

NOTA 2. “On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans”.

NOTA 3. “Si les temps revenaient, les temps qui sont venus!”

NOTA 4. “Car l’Homme a fini! l’Homme a joué tous les rôles!”

NOTA 5. “J’aime de cet objet la saveur desolée.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro