A Terceira Pessoa na Primeira

As divagações históricas e antropológicas de Alcy Cheuiche em O Farol da Solidão são precisas

21/12/2015 12:58 Por Eron Duarte Fagundes
A Terceira Pessoa na Primeira

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Carmelo é a personagem que narra O farol da solidão (2015), romance de Alcy Cheuiche. Quer dizer, a narrativa desliza, em alguns movimentos, em terceira pessoa: há um narrador e Carmelo é a personagem pela qual o narrador vê o mundo que retrata. “Carmelo abriu os olhos. Pela janela em forma de vigia o quarto circular se inundava de luz. Piscou algumas vezes, até acostumar-se com o brilho do sol.” Quando deu por si, abrindo bem os olhos para o sol narrativo, Carmelo está narrando a história. É a primeira pessoa que assoma. “Antes de descrever as coxas da professora Martinha, mais conhecida como Martinica, é bom que eu diga desde logo que me chamo Santos, mas não sou parente dele. Isso para não responder pela milésima vez a mesma pergunta. O senhor é parente do Deputado Carlos Santos?” O texto de Cheuiche fica assim oscilando entre a terceira e a primeira pessoa, e oscila entre a vida de Carmelo, o pesquisador, e a do deputado Carlos Santos, o pesquisado, ambos negros, ambos discriminados na província sem luzes.

As divagações históricas e antropológicas de Cheuiche são precisas. Em momento algum afrouxam a condução do verbo. Cheuiche, em termos de linguagem, exibe contemporaneidade que não abdica do rigor da forma. “O moço ergueu-se e espreguiçou-se. Caminhou dois passos até um canto do quarto onde estava a bacia de lata sobre um tripé. Pegou o jarro e colocou água na bacia. Escovou os dentes e jogou a água pela janela que dava para o pátio. Encheu outra vez a bacia e lavou o rosto.” Os gestos comuns seguem acompanhados pela palavra a um tempo enxuta e criativa do romancista. Da mesma maneira suas formas narrativas perseguem o discurso de Santos na tribuna nos anos 80.

Ou o caso do amor de Carmelo, que “muda de posição e deixa que Eliane o guie, com as duas mãos, até os pelos molhados do sexo.” Enfim, a perda da memória do velho Carmelo, “sentado em um sofá da sala”, estupefato ao ver Dilma Roussef, ex-guerrilheira torturada, no papel de Presidente da República. “Você não se lembra mesmo? De nada de nossa vida juntos nos últimos dez anos?” lhe pergunta a mulher. E, gesto final, evocando um pouco a súplica duma criatura do argentino Adolfo Bioy Casares em A invenção de Morel (1940), exclama no alto do farol: “Eu lhes dou dez anos da minha vida!... Mas, se vocês existem, me deem esta mulher de volta!” Assim, como palavras (um romance perdido no computador) e imagens (fotografias espalhadas na sala), a memória que foi destruída tem sua melancólica substituição. Antes que nada, resta aquele pedido por um gesto piedoso: me deem de volta esta mulher!

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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