Crnica de Minas

Se Minas no h mais para os velhos mineiros que escavam dentro de si mesmos, a Minas dos viajantes se renova sempre

16/10/2016 18:05 Por Eron Duarte Fagundes
Crônica de Minas

Praça Tiradentes, Ouro Preto, onde o corpo de Tiradentes enforcado foi exposto

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Minas Gerais nunca foi uma perseguição de meus anseios de viajante. Em Minas não há mar; as cidades mineiras são íngremes e não têm a luminosidade dos territórios que habitualmente me encantam. Belo Horizonte é uma das capitais brasileiras sem fronteiras marítimas e sem beleza natural: como Porto Alegre, em que moro. No entanto...

Minas sempre foi o caminho de alguma coisa em meu trajeto. Para sair do Rio de Janeiro e chegar ao Nordeste, por terra, eu tinha de passar por Minas. E no entanto que passagens estimulantes para a imaginação! Num fevereiro do fim dos anos 70, em meus deslumbrados pouco mais de vinte anos, eu estava em minha amada Rio de Janeiro; era a primeira vez que cruzava os limites de meu estado natal, o Rio Grande do Sul. Mas o sonho ia além do Rio: queria atingir Salvador, na Bahia, onde devia agitar-se o misticismo poético de Jorge Amado, um escritor bom de ler, embora eu não chegasse a deliciar-me tanto assim com sua literatura. Naquele fevereiro não havia ônibus para Salvador senão quinze dias depois, e aí eu já tinha compromissos em minha cidade. A opção foi uma conexão: tomar uma condução para Belo Horizonte, de onde certamente conseguiria passagem para Salvador, me garantiram na rodoviária do Rio. Assim posto, eis Belo Horizonte: cidade de passagem para Salvador, vindo do Rio. Minas Gerais: território de passagem do Sul para as maravilhas do Nordeste. Mas no meio da noite esta passagem revelou seu fascínio. A bordo de ônibus (Rio-BH, BH-Salvador), atravessando o interior de Minas, eu os vi. Meninos, eu os vi! Estendendo meu olhar encantado —um olhar entre infantil e maravilhado— para os vales lá embaixo, deparei com os pontos de luz, distantes, que eram na verdade pequenas cidades, vilas talvez. Lembro até hoje, como se fora aqui agora, a meu lado, que tentei imaginar que almas se agitavam no interior daqueles pontos de luz para mim longínquos que apareciam na noite de Minas; encostava minha cabeça no banco do ônibus, abria e fechava os olhos, via os pontos luminosos, sonhava com eles, imaginava o que estava debaixo deles, maravilhava-me com o prazer de deslocar-me por aquelas plagas tão fora de meu rincão. Então, neste fim de julho, tantos anos depois, dirigindo um carro na serra mineira no comecinho da noite, de volta para Belo Horizonte, cheguei a rever aqueles pontos de luz lá no vale. Meu coração se apertou com este reencontro tão marcado quanto inesperado.

Minas não há mais é uma frase do poeta Carlos Drummond de Andrade que de quando em quando ecoa em mim. Drummond procurava a Minas de sua infância: ela ficou lá, em sua infância. Os escritores temos destas coisas. O gaúcho Juremir Machado da Silva pôs no jornal Correio do Povo uma crônica falada (em vídeo) em que ele relata a procura duma chácara em Santana do Livramento, porém sua descrição da chácara já não corresponderia a nenhuma chácara existente hoje, a busca da infância na matéria de hoje é tão fascinante quanto inútil, simbólica e melancolicamente no fim de sua fala na crônica Juremir junta indelevelmente a busca da chácara e a busca do paraíso perdido da infância. Cyro dos Anjos, outro memorialista mineiro e comparsa de Drummond em seu tempo, anotou certa vez: “Acham-se no tempo, e não no espaço, as gratas paisagens.” A Minas de Drummond, a chácara de Juremir e as paisagens antigas de Cyro: tudo passa nesta vida (José de Alencar, cearense, fim de Iracema, 1865).

Se Minas não há mais para os velhos mineiros que escavam dentro de si mesmos, a Minas dos viajantes se renova sempre. A viagem por Minas pode ser nossa corrida do ouro contemporânea. Faz tempo que andar por Minas deixou de ser, para mim, um cenário de passagem, como era no fim dos anos 70. Posso até assegurar que a esta altura de minha vida nenhum cenário é de passagem: ou todos o são. Todo cenário se incrusta em mim: o mar, a mata, o morro íngreme ao feitio antigo, a estrada perdida, os bares da cidade, a morenice única das mineiras urbanas, o desvalido da garotinha negra topada junto à Igreja de Nossa Senhora do Ó, uma bela e escondida demonstração do barroquismo mineiro, no lugarejo de Sabará, a duas dezenas de quilômetros da capital; “a Olga está convidando vocês pra conhecer os produtos feitos com frutas da terra”, nos murmura a garotinha preta, quase inaudivelmente, e Olga é a senhora duma casa situada na diagonal da igreja, oculta atrás duma vegetação no pátio. A Minas dos inconfidentes não há mais: mas será que não ficou alguma coisa nestas pedras desta lomba antiga, se pergunta o caminhante que suspira estas relações entre universos históricos distanciados. Bernardo Guimarães, o criador da escrava Isaura, também teve seus pés nestes caminhos que piso, a acidentada Ouro Preto. E o poeta simbolista Alphonsus de Guimarães, sobrinho-neto de Bernardo, também é natural de Ouro Preto, outrora Vila Rica, e passou quase toda sua existência em Mariana, cidade vizinha, onde só consegui circular de carro, pois não encontrei lugar para estacionar. A caminho de Ouro Preto, subindo a serra, para-se para almoçar no lugarzinho de Itabirito, onde há um distrito, São Gonçalo Bação, em que se fabrica a cachaça Cobiçada (sabe-se que para os mineiros a cachaça é  que o chimarrão é para os gaúchos: um ato de recepção cordial ao homem de outras plagas). Inhotim, a cidade-museu dentro da desconhecida Brumadinho, traz a arquitetura a céu aberto de Hélio Oiticica, mas revela um filmezinho que trata do erotismo marginal em Salvador retratado por Miguel Rio Branco. Um diretor de cinema, pouco conhecido no sul do país, Ernane Alves, recebe-nos, a mim e à minha esposa, em seu apartamento no bairro de classe média alta e alta burguesia belo-horizontino, Buritis, para um café da tarde duma quarta-feira em que tergiversações gerais são contextualizadas pelo cinema, Ernane com seus filmes, eu com meus textos. Ernane é natural de Pedro Leopoldo, que também visitei; em Pedro Leopoldo nasceram pessoas como o médium espírita Chico Xavier, o grande jogador de futebol do Cruzeiro dos anos 60 e 70 Dirceu Lopes (Dirceu ainda vive em sua cidade natal, para onde se retirou depois que as ribaltas de seu estrelato futebolístico repousaram) e o treinador de futebol Marcelo Oliveira: enfim, Pedro Leopoldo, um pequena cidade produtora de talentos nacionais.

Minas não há mais, velho Drummond, mas a gente sempre recria uma Minas dentro de nós. A Lagoa da Pampulha, o Mercado Central e a longa e enviesada avenida do Contorno se agitam dentro destas recriações. Viajar é preciso. Para Minas ou para algum lugar. Sou como o ensaísta francês Jacques Lacarrière. Não preciso de motivos para viajar: o deslocamento é meu motivo. Definido como um vagabundo, no sentido de que é alguém que vaga, isto é, perambula, Lacarrière saiu-se com esta declaração certa vez, publicada num artigo para o número 561 de “Le magazine littéraire”: “O objetivo da viagem? Nenhum, senão o de perder seu tempo o mais feericamente possível. Esvaziar-se, desnudar-se e, uma vez vazio e nu, encher-se de sabores e saberes novos.” Um dos meus epitáfios poderia preencher-se destas frases de Lacarrière, que eu poria no original francês evidentemente: “Le but du voyage? Aucun, si ce n’est de perdre son temps le plus féeriquement possible. Se vider, se dénuder et une fois vide et nu, s’emplir de saveurs et de savoirs nouveaux”. Penso que o velho “l’enchanteur”, como o apodou Paul-François Paoli no aludido artigo, me deve ter plagiado, pois, sob outras formas, eu tenho explanado esta ideia sobre viagens a meus amigos há quase quarenta anos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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