A Crise do Pensamento
Mesmo um livro direto como O Conformismo dos Intelectuais (Les nouveaux bien-pensants; 2013) produz estes excertos de entrelinhas, os não-ditos entre os ditos
As entrevistas dadas pelo francês Michel Maffesoli ajudam a entender aquilo que fica entre as linhas de seus livros. Mesmo um livro direto como O conformismo dos intelectuais (Les nouveaux bien-pensants; 2013) produz estes excertos de entrelinhas, os não-ditos entre os ditos. Trata-se duma obra também atribuída à esposa de Maffesoli, Hélène Strohl, funcionária de carreira do Estado francês, formada e também mestra na famosa Escola Nacional de Administração (ENA). Na verdade, a senhora Strohl escreve o capítulo V, mas seus pensamentos, mais ligados ao ambiente da administração pública, dialogam o tempo inteiro com as ideias desenvolvidas por seu marido ao longo do livro.
De onde vem esta verve letal que Maffesoli usa contra os seus, digamos, os intelectuais como ele? Questionado pelo jornal francês “Contrepoint” desde o título de seu livro (se há os novos bem-pensantes, quem seriam os velhos?), Maffesoli abre a inspiração literária de suas reflexões. E diz: “Trata-se duma piscadela para George Bernanos, que escrevera sobre este tema durante o entre-duas-guerras, onde ele denunciava os pacifistas.” Mas um perguntador francês é insistente, não se conforma com a pura revelação, quer saber se o autor diferencia nuanças de pensamento entre os bem-pensantes de Bernanos e aqueles que Maffesoli agora põe em cena. Maffesoli se entrega: “Creio que não há mudança de fundo. A atitude de intolerância é um traço comum a uns e a outros.”
Em O conformismo dos intelectuais Maffesoli dá sequência a sua ojeriza contra os supostos donos do saber na modernidade, os intelectuais de sempre. Há um artigo recente do escritor francês, publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, em que ele desanca um dos mitos culturais do século XX, o francês Jean-Paul Sartre. Em seu livro aqui analisado uma das vítimas do verbo ferino de Maffesoli, entre outras criaturas menos notadas por aqui, é Pierre Bourdieu, um filósofo conceituado. Concordando-se ou não com todas as diatribes de Maffesoli, reconhece-se que há uma fúria demolidora necessária para que se troque o ar viciado do pensamento. E não se pense que, fazendo a radiografia do intelectual num mundo muito transformado, Maffesoli livra inteiramente sua cara. Num de seus livros anteriores, o extraordinário Homo Eroticus; comunhões emocionais (2012), Maffesoli, professor da Sorbonne, não repugna um certo asco que os corredores da veneranda universidade lhe causam.
Hélène Strohl, a coautora de O conformismo dos intelectuais, começa o capítulo V anotando: “Independente do que se diga, também somos desta tribo, mesmo que seja de bom tom falar da desconfiança que ela nos inspira.” Que tribo? A tribo das tribos, a classe dos altos funcionários do Estado francês. Talvez Hélène se sinta constrangida em pertencer a esta tribo, assim como Maffesoli o sinta em ser um intelectual de prestígio. Talvez um constrangimento quase impotente: nada se pode fazer senão escrever livros radiografando o problema. Na mesma entrevista ao “Contrepoint” Hélène revela algumas experiências com alunos da ENA, chamados na França “énarques”. “Os jovens énarques”, diz ela, “me parecem mais abertos para os outros e menos entre si mesmos.” E dá uma observação notável: “Alguns têm mesmo um pouco de vergonha de pertencer a uma casta.” Alguns alunos, envergonhados da classe privilegiada a que pertencem, buscam esconder suas origens na convivência com os outros. Talvez este exemplo cotidiano sirva de parâmetro para Hélène e Michel.
Em outra entrevista-dueto, dada a Juremir Machado de Silva e publicada no Caderno de Sábado do Correio do Povo de cinco de setembro de 2015, Hélène reconhece o anacronismo do modelo do Estado do Bem-Estar Social na França e Michel aduz: “Os intelectuais de esquerda não são reacionários, mas são, com frequência, conservadores. Digo isso no sentido de que eles não querem ver as coisas como são, mas como eles gostariam que fossem: uma sociedade imutável para a qual eles devem dizer como agir e pensar.”
O conformismo dos intelectuais é uma conversação intelectual à beira do campo. Não teme seus temas, não teme a contemporaneidade de linguagem, nem medo de parecer imediatista, o que na verdade não é, pois sua agudeza de pensar é na verdade sua própria profundidade. Em tempos de crise (a econômica, a intelectual, a moral, a política, etc.), Maffesoli anota isto, bem no começo de suas ponderações: “Trata-se do indubitável sintoma de todos os períodos de decadência; isso é a crise: um momento em que, ao não ter mais consciência do que se é, deixa-se de ter mais confiança no que se é; como a crise, um julgamento (crisis) feito pelo que nasce sobre o que está desaparecendo. A crise está em nossas cabeças! Para parafrasear Leonardo da Vinci, é uma cosa mentale, uma coisa que trabalha no espírito coletivo.” Alguma parecença com coisas próximas de nós, que aparentemente estamos longe da Europa e da França?
P.S.: As entrevistas de Michel Maffesoli e Hélène Strohl dadas ao jornal “Contrepoint” foram traduzidas por este comentarista diretamente da publicação francesa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br