A Crise da Reflexao Estetica no Brasil: Dramaturgia e Ideologia
Cineastas e Imagens do Povo vai atras de uma atitude cultural exteriorizada
O texto é uma releitura. O livro foi originalmente lido pelo comentarista no calor da hora, em 1985. Lançou algumas luzes sobre alguns filmes essenciais que foram vistos nos anos que antecederam a leitura, especialmente alguns filmes do alemão Alexander Kluge. Reorientou a visão de alguns filmes vistos nos anos seguintes à leitura, inclusive os novos filmes de Kluge que iam aparecendo no circuito alternativo. Reler o livro, em 2020, foi uma aventura de reposicionamento.
(Em 1985 estávamos, eu e meu amigo Tuio Becker, crítico de cinema, a uma mesa do Instituto Goethe, em Porto Alegre, à espera duma sessão de cinema. Duas referências culturais na conversa. Começamos falando do então novo filme de Volker Schlöendorff, Um amor de Swann. Os rumos do papo, naturalmente, foram ter ao escritor francês Marcel Proust, de cujo romance-rio o cineasta alemão extraíra seu filme. Para minha surpresa e decepção, Tuio me confessou que nunca lera Proust, e que àquela altura—Tuio, doze anos mais velho que eu, tinha pouco mais de quarenta anos— só o faria se caísse de cama, com hepatite. Não o disse a Tuio, mas inquietava-me que alguém tão culto quanto Tuio e com aquele brilho de escrita dele nunca tivesse lido um romancista obrigatório como Proust: ingenuidade minha, imaturidade minha. O segundo tópico da nossa conversa voltou-se para o então novo livro de Jean-Claude Bernardet, Cineastas e imagens do povo. Eu confessei a Tuio de meu deslumbramento com as novidades argumentativas de Bernardet. Tuio também amava o livro. Mas meu amigo Tuio deixou escapar sua ponta de ciúme, como um homem que escrevia sobre cinema desde a obscuridade da província. Disse-me que a percepção de detalhes de Bernardet só era possível porque escrevera o ensaio usando a moviola, uma máquina de projeção então usada em salas de montagem; quero aqui lembrar ao leitor que em 1985 estávamos ainda longe da era dos dvds e mais longe ainda dos tempos da internet, onde podemos ver um filme quadro a quadro, como fez Bernardet na moviola nos anos 80. Jovem, lembro que me deliciei com essa sutil disputa de espaço entre indivíduos culturais que eu admirava muito. Meu amigo Tuio, uma das mais prodigiosas memórias para descrever cenas e significados de filmes que conheci, faleceu em 2008, mal de Alzheimer, memória e cérebro destruídos. Um pouco esta releitura, mais de três décadas passadas, é uma homenagem a esta velha conversa no bar do Goethe, da qual assoma para mim, entre as trivialidades esquecidas, duas alusões culturais que me marcaram por estes anos todos.)
Na “Advertência ao leitor”, que abre os diálogos críticos de Cineastas e imagens do povo (1985) já como parte das reflexões, Jean-Claude Bernardet observa que a intenção de seu livro é “levantar discussões ideológicas e estéticas que ultrapassam não só o campo do documentário como também do cinema, e ser uma contribuição para a compreensão de conflitos vividos por artistas e intelectuais brasileiros aproximadamente de 1964 a 1980 em relação às imagens do povo.” Na abertura do tópico seguinte, “Introdução”, Bernardet adverte: “Este ensaio não é nem uma história nem um panorama do cinema documentário de curta metragem produzido no Brasil entre 1960 e 1980, período em que foram realizados os filmes aqui analisados ou citados.” Que é, pois, Cineastas e imagens do povo ou o que pretende seu autor que seja? Embora estruturado sob a forma de textos críticos em torno de filmes de curta metragem brasileiros (como se fossem críticas fechadas em si mesmas, no objeto filme: cada trecho pode ser lido um pouco assim), não é uma coletânea de críticas de cinema: é um ensaio com um nervo central que o orienta; esforça-se por ver os filmes como uma expressão cultural de uma sociedade, de uma classe e de um tempo, e mexe nas transformações formais de um filme para outro somente para tornar a seu centro, o artista e os limites de sua arte dentro da sociedade. Na introdução de Brasil em tempo de cinema (1967) Bernardet ia por algo parecido, ao afirmar que “este ensaio não é um catálogo comentado de filmes brasileiros produzidos de 1958 a 1966” e dizer que “pretende ser e, na medida do possível, uma interpretação cultural exteriorizada, conscientemente ou não, no conjunto dos filmes brasileiros realizados nos últimos nove ou dez anos”.
Cineastas e imagens do povo vai de novo atrás desta “atitude cultural exteriorizada”. O cineasta é o agente desta atitude. Bernardet deteve-se em filmes curtos, em regra desconhecidos do grande público, para estabelecer um roteiro analítico à parte. Curiosamente, na advertência ao leitor ele cita Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, um filme de longa metragem, como aquele que poderia ter mudado sua perspectiva de trabalho se tivesse aparecido antes de sua escrita. Não menos interessante é que, lá pelo fim, ele evoque: “Esta reação se fará nítida num setor da produção cinematográfica, dando origem a filmes desesperados que abordarão a situação do intelectual, suas relações com o poder, e com o povo e a revolução. Entre eles, obras-primas como Terra em transe e Os inconfidentes.” Os dois filmes referidos neste trecho (o primeiro de Glauber Rocha, o segundo de Joaquim Pedro de Andrade) são filmes de longa metragem. Antes, o texto de Bernardet já anunciava Terra em transe como “o filme mais agudo dessa crise”. Que crise? A crise-objeto do pensamento cinematográfico de Bernardet: que papel tem desempenhado o intelectual brasileiro (entre eles, o cineasta) na sociedade brasileira gestada pelo golpe militar de 1964?
Com a calma crítica de um espectador que, na sala de montagem, deixa rodar a moviola, Bernardet propõe seu jogo ao leitor. Toma por conceito inicial o de “modelo sociológico” de documentário. Viramundo, de Geraldo Sarno, dá este pontapé inicial. A utilização da voz off como a voz do saber é alvo da desmistificação de linguagem que Bernardet empreende: o ensaísta faz a radiografia do real cinematográfico que o realizador do filme quer que seja o real em última instância, há aí um processo crítico de desmascaramento da associação entre quem faz o filme e os objetos do filme, geralmente operários, camponeses, gente muito distante do mundo do cinema; neste processo que em primeira mão se volta para o cinema, o que Bernardet pretende é desmascarar a questão social e política de um determinado tempo no século XX, a associação entre o intelectual-orientador e o povo, o intelectual como alguém que se identifica com as aspirações populares, uma corrente de ideia tão cara a uma certa linha que esteve em moda nos anos 60 a 80 do século passado. Nos filmes que Bernardet analisa depois de Viramundo, tido pelo ápice do modelo sociológico, vão-se descortinando as alterações trazidas um pouco pela percepção dos cineastas, outro tanto pelas próprias mudanças de perspectiva da sociedade brasileira, as imagens do povo alteram-se em cada filme: a maior abertura do cinema para a construção do real no momento mesmo das filmagens, até chegar aos filmes que mais perturbam o ensaísta, aqueles de Arthur Omar e Aluysio Raulino, em que a impossibilidade de criar a imagem do outro em sua extensão real faz nascer uma imagem desta imagem, o ponto abstrato, o formalismo extremo como reflexão sobre a realidade. Bernardet não teme o confronto destes limites, como sempre foi sua orientação de filósofo do cinema insere-se na própria produção de conceitos cinematográficos atritando-se com o universo das pessoas que fazem o cinema que ele esmiúça. Um bom exemplo contido em Cineastas e imagens do povo é a revelação, lá a folhas tantas, de que o texto crítico que abriu o ensaio, tratando de Viramundo, foi exposto ao diretor Geraldo Sarno, que respondeu a Bernardet com sua perplexidade: “Não entendo.” Bernardet tenta entender o “não entendo” de Sarno. “A atitude do cineasta era humilde, não há como duvidar disto, mas a sua linguagem não era.” Bernardet vai mais adiante: não deixa de expor seu próprio conflito de um ideólogo cinematográfico. Um pouco marcado pelo perplexo de Sarno, e embora se tenha abalançado a explicar esta perplexidade do cineasta diante do texto crítico, Bernardet faz um mergulho em suas próprias dúvidas e contradições, que são as de todo analista de filmes, embora nem sempre com essa agudeza e profundidade que vemos aqui: “há uma fronteira dificilmente perceptível entre o que ainda é a análise do filme e o que já pode ser o malabarismo de um crítico embevecido pelas análises que consegue produzir, e isto sem prejuízo da coerência interna do texto, e sem que os argumentos deixem de se apoiar em elementos concretos do filme”. Como parte da crise de interpretação da realidade brasileira, e posto a observar esta crise estético-intelectual de dentro do cinema, Bernardet faz de Cineastas e imagens do povo o movimento ensaístico tenso destas questões no coração da década de 80 no Brasil: uma certa reabertura social e política em que então vivíamos. Bernardet ainda é um nome fundamental da cultura brasileira; neste século XXI, bastante envelhecido, doente, (quase) sem visão para ver filmes e escrever, Bernardet tem saído, em termos, do espaço do texto interpretativo e avançado para a interpretação dentro do filme, diante da câmara, um ator; não é uma atividade ignorada de sua história no cinema, pois tivera uma participação forte em P.S. Post scriptum (1980), de Romain Lesage, mas hoje em dia, aproximando-se de jovens realizadores paulistanos, amigos seus, Bernardet fez proliferar esta antiga febre de seu status artístico; em Fome (2015), de Cristiano Burlan, por exemplo, Bernardet perambula pelas ruas de São Paulo como um mendigo que, depois se descobre, fora um ex-professor universitário que caiu em desgraça mental, daí sua vida atual. Estaria aí, nesta ligação entre um mendigo (o povo) e um intelectual (Bernardet é professor universitário, como era sua personagem no passado), uma proposta que o autor de Cineastas e imagens do povo, conluiando-se com o diretor Burlan, faz nascer para radicalizar, com sarcasmo, estas relações ideológicas e estéticas que tanto o obcecaram ao longo da vida?
(Reler, passados tantos anos, é muitas vezes, simplesmente, ler. Ainda que frases e conceitos pareçam naturalmente ressuscitar em alguma parte do cérebro à medida que a leitura avança. 1985 foi um ano cinematográfico anêmico por aqui. A leitura dum ensaio sobre um específico universo de filmes, como Cineastas e imagens do povo, era uma respiração para um pensamento que andava em marca-passo.)
A releitura agora foi feita na edição original da Brasiliense, de 85. Sabe-se que em 2003 a Companhia das Letras reeditou esta obra de Bernardet. E o autor acrescentou, na reedição, alguns textos novos. Todos os textos novos, ao que parece, tratavam de filmes de longa metragem. O que, parece, sempre foi uma espécie de escopo nas anfractuosidades da ideia central do escritor cinematográfico Bernardet: falando de filmes curtos, transbordava para filmes longos; falando de imagens pouco conhecidas, se encaminhava para algumas mais aludidas na história do cinema. Tanto é que, no corpo de Cineastas e imagens do povo, lemos notas sobre Terra em transe (Glauber Rocha), Os inconfidentes (Joaquim Pedro), Mar de rosas (Ana Carolina), A dama do lotação (Neville d’Almeida) e Uirá, um índio em busca de Deus (Gustavo Dahl). Na edição de 2003 Bernardet parece ter vencido, de alguma maneira, o recalque que na “Advertência ao leitor” de 1985 ele já revelara: não ter visto antes de fazer seu trabalho o Cabra marcado para morrer: um dos textos novos debruçava-se sobre o filme de Eduardo Coutinho.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br