Ray do Oeste

Com Nicholas Ray não tinha tempo ruim. Sua trajetória de diretor tem exemplares de quase todos os gêneros que movimentaram Hollywood dos anos 50 aos 80

23/03/2018 00:38 Por Bianca Zasso
Ray do Oeste

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Com Nicholas Ray não tinha tempo ruim. Sua trajetória de diretor, iniciada com o ótimo Amarga Esperança, em 1948, tem exemplares de quase todos os gêneros que movimentaram Hollywood dos anos 50 aos 80. Dois de seus faroestes, Paixão de Bravo e Fora das Grades, integram o box Cinema Faroeste Vol. 4, lançado pela Versátil Home Vídeo, e permitem uma sessão dupla bastante interessante até para quem não é amante das películas com cavalos e pistolas. Isso porque Ray, seja no noir ou no épico, nunca perdeu de vista o seu tema principal: os conflitos humanos.

Paixão de Bravo, um título romântico para o original The Lusty Men, parece um conto sobre um famoso peão de rodeios que, após uma acidente, decide ajudar um jovem talento a alcançar a fama. Mas isso é pouco diante da carga emocional que o filme proporciona. Robert Mitchum está ótimo como Jeff McCloud, o protagonista amargurado que se vê obrigado a abandonar a vida errante de peão rico e conquistador após ser derrubado por um touro e ter a perna machucada. Como não sobrou nenhum centavo de seus prêmios em rodeios, McCloud começa a trabalhar como agricultor na pequena propriedade de Wes Merrit, interpretado por um inspirado Arthur Kennedy. Só que arar a terra não é lá muito empolgante e nosso herói aproveita a paixão por rodeios de Merrit para encorajá-lo a ter uma carreira nas arenas. No meio destes dois homens cheios de sonhos, temos Louise, esposa de Merrit, um símbolo da dona de casa exemplar norte-americana. Seu objetivo é ajudar o marido a economizar cinco mil dólares para comprar um rancho onde ela terá uma vida tranquila e digna, nas palavras da própria.

Susan Hayward, intérprete de Louise, é a típica coadjuvante do cinema de Ray. Mesmo que não seja a sua história que está sendo contada em primeiro plano, sem ela nada teria sentido. É por causa dela que McCloud aceita trabalhar com Merrit. O interesse na moça fica claro desde a primeira troca de olhares e os planos de Ray mandam recados o tempo todo para o espectador sobre a tensão sexual entre os dois. O investimento nas cenas dos rodeios, incluindo verdadeiros peões como figurantes, parece ter sido uma exigência do contrato, pois é nos diálogos e nas cenas com pouca ação que Ray investe seu estilo. O poder de sedução de suas cenas faz com que fiquemos hipnotizados pelo misterioso McCloud, que oscila entre mocinho e vilão. Ou seja, é como todos nós, assim como Merrit que, diante do poder trazido pelo dinheiro, se torna arrogante e coloca em risco sua vida. O trio formado por McCloud, Merrit e Louise circula pelas sequências mostrando todas as suas fragilidades e dúvidas e é isso que conquista em Paixão de Bravo. A violência das quedas dos touros na arena são apenas mais uma metáfora para os percalços do cotidiano.

Já em Fora das Grades, a assinatura de Ray é menos visível, mais ainda assim presente. James Cagney é Matt Dow um ex-ladrão de bancos que largou a vida de fora-da-lei mas ainda carrega o dor de ter perdido um filho. No meio de seu caminho em busca de uma nova vida em alguma cidade do velho oeste, ele encontra Davey, um jovem que ele elege como substituto de seu filho morto. Dow cuida do rapaz após ele ser atingido por um tiro que o deixa com problemas para caminhar e, quando é escolhido como novo xerife da cidade, Davey ganha o cargo de assistente. Parece que ambos encontraram a paz, mas o que vem a seguir é uma série de traições, mal-entendidos e rancores guardados. Apesar da fotografia e do figurino reforçarem o oeste caricato, os personagens são repletos de falhas físicas e de caráter. Os homens errantes de Ray cavalgam pela pradaria dourada quase como paradoxos. Pose de herói, sentimento de homem. Sem grandes feitos. Machas no currículo. Escolhas erradas. Chega a ser engraçado que a única personagem feminina da trama, Helga, seja mostrada como a perfeição em pessoa, pelo menos para o que Hollywood via como perfeição para uma presença feminina em um faroeste: bela, recatada e do lar, cujo único sonho é casar com Jeff. Em um diálogo rápido na varanda, ao saber que seu interesse romântico foi casado e a mulher pediu o divórcio, ela solta: “Ela devia ser muito má!”. Largar o marido não era muito bem-visto naqueles tempos. Tem gente que não saiu deles até hoje, diga-se de passagem.

Paixão de Bravo e Fora das Grades são diferentes, mas ambos dão uma amostra de como um bom diretor pode transformar um trabalho de encomenda em algo mais profundo e inteligente. Faroestes, tido por alguns como meras aventuras para alienar o público, podem ser uma terra fértil para falar de coisas complexas como seres humanos, por exemplo. Atrás de cada mira de revólver, há um coração batendo e muitas dúvidas pulsando. Quer maior aventura que essa?

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Sobre o Colunista:

Bianca Zasso

Bianca Zasso

Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.

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