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Juremir Machado da Silva, mais uma vez sem papas na língua, desmonta ponto por ponto as mitologias dos farrapos em História Regional da Infâmia (2010)

30/09/2016 23:29 Por Eron Duarte Fagundes
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A Revolução Farroupilha é a origem da gauchada: o mito da bravura honrosa do homem dos pampas. Na verdade, segundo demonstrou o romancista Cyro Martins, o gaúcho é um pobre coitado, um miserável, um a-pé. Seriam os ancestrais deste gaúcho miserável do século XX nobres, seriam heróis os heróis farrapos?

Juremir Machado da Silva, mais uma vez sem papas na língua, desmonta ponto por ponto as mitologias dos farrapos em História regional da infâmia (2010). O subtítulo “O destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários)” indica o nervo central da reflexão de Juremir em seu novo ensaio sociológico. Debruçar-se sobre o racismo sul-riograndense a partir do que ocorreu com o negro gaúcho durante a Revolução Farroupilha. Mostrar avidamente como este racismo foi ter a consequências econômicas que permitiram a existência daquela revolução: vendendo os negros (afinal, a escravidão negra ia de vento em popa no Brasil imperial), veio o dinheiro que financiou os movimentos bélicos farrapos. Amparado em exaustivos documentos e pesquisas, Juremir desdobra-se em argumentações acerbas e inteligentemente interrogativas sobre os fatos que vai abordando; Como habitual em Juremir, não é a palavra definitiva da história, mas uma das palavras possíveis da história.

A revolução Farroupilha e sua produção de imaginários (para seguir o rastro do pensamento de Juremir) chegou a gerar entre nós um certo tipo de literatura ufanista. O Capitão Rodrigo de Erico Veríssimo é filho destes conceitos, mesmo em se tratando dum romancista mais realista como Erico. Certa vez, conversando com Décio Freitas, o historiador gaúcho destratou o Capitão Rodrigo e tudo aquilo que ele representa (bravatas e adjacências): “Que ridículo aquilo tudo!” Erico, um de nossos melhores escritores, não está imune a influências tendenciosas e perniciosas e sua criação do Capitão Rodrigo é um bom exemplo. Mas quem aceitaria esta assertiva pacificamente? Décio murmurou o impropério, mas nunca o escreveu: Erico e seus textos seriam inatacáveis, ao menos por aqui, senão se estaria ferindo a “nacionalidade” gaúcha num “representante digno” como Erico. Juremir não tem medo dos impropérios, mesmo (e principalmente) contra os mitos; destrata um tanto Euclides da Cunha e seu livro mítico Os sertões (1902), que era, segundo Décio, o único texto de ciência social brasileira que admirava irrestritamente. Juremir esmiúça Euclides e seus preconceitos raciais. A questão também é: a miscigenação proposta livra Gilberto Freyre (que Juremir admira, contrapondo-se a Décio) do racismo, ou é a miscigenação também uma forma de racismo pela eliminação dos negros cruzando-se com eles? No fundo, o racismo está em todos e afetou todas as revoluções do Império, entre os derrotados provincianos e imperiais pretensamente morais como o Duque de Caxias. De uma certa maneira, isto se evidencia ao longo de História regional da infâmia, que na verdade se alarga para o universal da infâmia, a infâmia borgiana a que o próprio Juremir alude no início de seu livro.

Lá pelo desfecho do livro, Juremir aduz a personagem do negro Manoel Pereira, que encontrou no Rio quando lá esteve para pesquisa e entrevistas para seu romance Getúlio (2004). Manoel nasceu no dia em que Getúlio Vargas se suicidou e é filho de Manoel Congo, negro sobrevivente da batalha de Porongos. Esta figura liga os dois livros de Juremir Machado da Silva, o romance sobre o presidente brasileiro suicida e o ensaio sobre a participação dos negros na Revolução Farroupilha. Assim, como parece acontecer sempre, a literatura de Juremir é um todo em que as peças nascem umas do lado das outras para se encaixarem em obras que, falando de coisas diferentes, apontam para uma reflexão uniforme, uma coerência dentro da disparidade de assuntos. À luz de seus conceitos do imaginário, Juremir brinca, refletindo: “Manoel Pereira sumiu no mundo assim como veio. Nunca mais o localizei e não me admiraria se me provassem que nunca existiu.” Ou, como diz um das frases da epígrafe do livro: “Todo real é imaginário.”

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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