Para uma Atriz, Dois Filmes
Manifesto (2015) possui muitas mensagens e permite que estas sejam resignificadas a cada revisão
Manifesto. Ano: 2015. Direção: Julian Rosefeldt. Disponível em DVD pela Mares Filmes
O que é cinema e o que não é? Existe beleza no banal? Só o belo merece o nosso olhar? Acordar, acender um cigarro, chorar: isso é arte? Arte para o quê? Arte para quem? As perguntas parecem criadas após algumas doses a mais que o permitido pela lei, mas são algumas das quepairam na mente do espectador após assistir Manifesto, filme do artista alemão Julian Rosefeldt. Em 2015, ele expôs uma instalação que consistia em treze vídeos protagonizados pela atriz Cate Blanchett exibidos simultaneamente em uma sala. Manifesto, o filme, é a transposição deste trabalho para o cinema. A arte que nasceu para o museu invade a sala escura.
Os treze personagens que Blanchett interpreta surgem com suas ações já acontecendo e não chegam a um fim específico. Não é uma história que se pretende contar. Assim como a obra que Rosefeldt expôs em Melbourne, Berlim e Nova York, Manifesto é uma experiência. O que se sente diante dele é o que importa para quem o dirige. Logo, escrever uma crítica baseada no roteiro é algo impossível, jamais atingiremos sequer um pedaço do que é a proposta do filme. E isso não é incapacidade da crítica que vos escreve. Diante de Manifesto, não existem respostas fixas ou corretas. Nem erradas. As treze criações que surgem de forma intercalada dentro do filme, talvez para remeter a experiência de simultaneidade que a instalação permitia, mostram artistas, apresentadores de TV, professores, mendigos, curadores, donas de casa, alcóolatras...todos exalando dos poros de Cate Blanchett. O filme é dela. E também não é.
Isso porque é possível assistir Manifesto de várias formas. Se prestarmos atenção aos diálogos, veremos uma série de ideias sobre arte, alguns beirando a poesia beatnik, como na sequência da família tradicional que faz a oração antes da refeição, e temos algumas propostas para manter e romper as ideias artísticas do nosso tempo. Nada é original. A frase é dita e aparece escrita em um quadro digital num ambiente escolar que poderíamos chamar de perfeito. Trechos do manifesto que instaurou o movimento Dogma 95 são facilmente reconhecíveis e soam como uma afronta e também uma dúvida. Ditar regras é exercitar a criatividade? A arte precisa de regras? Não há rebeldia nas linhas retas? As cenas conduzidas por Rosefeldt nos convidam a entrar na brincadeira e quem sabe até criar nossas próprias propostas.
O outro filme possível em Manifesto é uma tour de fource de uma das atrizes mais atuantes e talentosas da atualidade. Cate Blanchett, que já tinha mostrado não gostar de fronteiras aos interpretar com brilhantismo a fase sessentista de Bob Dylan em Não Estou Lá, de Todd Haynes, aqui extrapola sua capacidade de transformação. Auxiliada por uma equipe de direção de arte e maquiagem competente, a atriz dá vida, voz, corpo e alma únicos a treze tipos diferentes na aparência, mas nem por isso menos artísticos ou passíveis de serem objetos da arte.
Suas atuações também são um manifesto. Uma atriz que presidiu o júri deste ano do Festival de Cannes e colocou as mulheres do cinema, das intérpretes, passando pelas roteiristas e diretoras de fotografia, como protagonistas de uma das premiações mais machistas do mundo, não quer se dar por satisfeita com dois Oscar na estante e inúmeros convites para atuar. Quer personagens que respeitem sua idade e não exaltem a juventude como única forma bela de ser mulher, que desafiem, que não dependam de um protagonista homem para brilharem em cena, que falem verdades e não continuem vendendo ilusões que não convenciam nem nossas avós.
Manifesto possui muitas mensagens e permite que estas sejam resignificadas a cada revisão. Uma delas é o talento de Cate Blanchett, eternizado neste filme que, apesar de ter sido lançado em 2015, parece complexo demais para os nossos tempos. Que haja uma redescoberta e ela não seja silenciosa. Manifestar quietos no nosso canto nunca leva a lugar nenhum.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.