Ensaio Sobre a Vida
Depois do Ensaio não é o melhor filme de Bergman. Mas há nele um tom confessional e uma singeleza que não percebemos em suas obras anteriores
Tenho problema com números. Desde criança. Aprendi que a agenda era minha melhor amiga ainda no ensino fundamental. E, há quase um mês, vinha me preparando para a comemoração do centenário de Ingmar Bergman. Poderia ter marcado uma sessão com amigos, mas resolvi ser fiel ao cineasta sueco e absorver seus filmes na mais completa solidão. Ok, a barulheira da rua me lembrava, de tempos em tempos, que eu não estava em uma ilha deserta. Mas, mesmo assim, me deixei levar pelo poder de atração de Bergman mais uma vez. Escolhi para a comemoração algo especial. Nada de obras-primas, e olha que ele tem várias. Nada de revisões. Um elemento novo.
Noite de Ensaio foi um dos trabalhos que Bergman produziu especialmente para a TV, após anunciar a sua aposentadoria da Sétima Arte no final dos anos 70. A ideia do roteiro é simples até demais: a troca entre uma jovem atriz, Anna, vivida por Lena Olin, e Henrik Vogler, um diretor de teatro veterano, interpretado por Erland Josephson, após um ensaio da peça O Sonho, de August Strindberg. Simplicidade também é a palavra de ordem do cenário e da direção de arte. Apenas um palco, alguns elementos de cena e praticamente nenhum truque de montagem.
Temos um homem e uma mulher de tempos diferentes e que nutrem pelo teatro paixões distintas, mas ambas intensas. Desde o primeiro diálogo entre Anna e Henrik, somos capturados. Sabemos que não é apenas a discussão de uma atriz ansiosa por sua estreia e um encenador exigente. A relação entre eles é antiga, já que Anna é filha de uma das atrizes com quem Henrik mais trabalhou. Eis que este elo de ligação surge em cena, em carne, osso e devaneios. Ingrid Thulin, com mais de 40 anos e com o mesmo brilho no olhar da juventude, aparece em um flashback longo e hipnotizante.
É sua personagem, Rakel, que insere novos elementos na trama, mas nada preciso. O espectador ganha mais dúvidas que respostas com as mudanças de humor e o desespero por afeto que ela demonstra. Enquanto isso, Anna continua no palco, imóvel. É possível que nem lembrássemos dela se a câmera não se demorasse em seu rosto em alguns momentos. Ingrid Thulin não é a protagonista, mas faz a sua parte para que Lena Olin brilhe, pois dá subsídios para que Anna se mostre inteira para Henrik. Mas estamos em um palco. Não seria tudo um grande teatro ou um sonho que surgiu durante o cochilo de Henrik?
Depois do Ensaio não é o melhor filme de Bergman. Mas há nele um tom confessional e uma singeleza que não percebemos em suas obras anteriores. Será que por estar no seu primeiro ambiente de trabalho, o teatro, o sueco se sentiu à vontade para não ir tão à fundo na alma de seus personagens? Claro que nada é simples em sua obra, nem mesmo neste exemplar destinado à televisão. Mas estamos mais no raso das pessoas que circulam pela tela do que em Persona ou Sonata de Outono. No palco as coisas são mais fáceis que no cinema? O filme é uma declaração de amor de Bergman para suas atrizes ou uma carta amargurada para si mesmo? Mais perguntas. Nunca teremos as respostas de Ingmar. Talvez por isso nosso amor por ele só aumenta.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.