Um Ensaio Sobre a Culpa Religiosa
Crimes e pecados (Crimes and misdemeanors; 1989) eh um dos mais sofisticados filmes feitos pelo americano Woody Allen, aquele em que a agudez literaria de seu cinema mais se aproxima da forma de seus modelos
Crimes e pecados (Crimes and misdemeanors; 1989) é um dos mais sofisticados filmes feitos pelo americano Woody Allen, aquele em que a agudez literária de seu cinema mais se aproxima da forma de seus modelos, sem perder a capacidade de comunicação pela clareza do senso de filmar. O escritor russo Dostoievski, sem estar citado diretamente, é uma das fontes centrais da narrativa. Outra fonte que ocorre ao observador é Crimes d’alma (1950), o imbatível primeiro filme do italiano Michelangelo Antonioni. Ingmar Bergman, o sueco que habitualmente move muito a mão de Allen, também está presente. Pode-se pensar no soturno O império da paixão (1978), do japonês Nagisa Oshima, mas há distâncias culturais intransponíveis.
Como nestas referências todas (cinematográficas ou literárias), Crimes e pecados divaga sobre a culpa na mente do homem e a forma como a formação religiosa determina o andamento desta culpa. Para armar este sistema ensaístico, o roteiro de Allen propõe uma narrativa já encenada outras vezes pelo cinema: um homem rico se vê às voltas com as ameaças da amante no momento em que quer descartar este relacionamento marginal para seguir seu casamento com mais tranquilidade; pressionado, o casado-amante-milionário aceita a ideia de seu inescrupuloso irmão de que a única saída é contratar a eliminação da amante. Esta história é bastante forte, psicologicamente pesada, para iluminar a questão básica de Crimes e pecados: acionados por nossa formação cristã, não logramos livrar-nos da culpa de nossos crimes e pecados. O que descontrai os músculos do filme de Allen é a história paralela em que um documentarista se envolve numa produção egocêntrica dum outro homem de cinema e surge entre os dois a disputa por uma desajeitada garota meio intelectual, meio bizarra. As histórias não são tão harmonizadas assim, e o ensaio sobre a culpa é um pouco amenizado: o resultado é que Crimes e pecados roça uma obra-prima, o que pode frustrar um pouco o admirador de Allen. No entanto, Allen é um autêntico homem de cinema, e sua escolha de elenco dá um ponto de partida extraordinário: Martin Landau é o casado-amante em processo de culpa, Anjelica Huston é sua delirante amante neurótica, Claire Bloom é a esposa dedicada e ignorante de tudo, Allen faz o documentarista que o sistema se esforça por soterrar, Mia Farrow aparece como um pólo que se aproxima e afasta da personagem de Allen, Alan Alda é o galã fútil.
Crimes e pecados é um dos mais cruéis filmes de Allen. Crueldade que é perturbada mesmo pela presença cômica de Allen como ator e da segunda história que ele parece encenar para si mesmo. Como sempre, a sofisticação é oscilante entre o artificial e o improvisado neste que é um de seus filmes elevados característicos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br