As Inquietacoes de Bernardet em Voo
O Voo dos Anjos talvez seja o mais particular ensaio sobre cinema que se pode escrever no Brasil
Jean-Claude Bernardet diz, na introdução, que seu livro O voo dos anjos (1990) nasceu do desdobramento de um outro projeto, “sobre a noção de um autor no cinema”. Sabe-se que, em algumas teses, Bernardet questiona a percepção do diretor como autor no cinema, dono estilístico de um filme, as possibilidades duma autoria cinematográfica como temos na literatura ou na pintura, artes de realização individual. Onde o coletivo no cinema constrói um outro tipo de autor? “O caso desenvolveu-se a ponto de adquirir tal autonomia que resolvi publicar um ensaio sobre esses cineastas, que será seguido por outro sobre a autoria no cinema.”
Próximos (estética e por geração) e no entanto diversos, os diretores brasileiros Julio Bressane e Rogério Sganzerla são o objeto da visão fílmica (ou das visões fílmicas) de Bernardet em O voo dos anjos. “Por que eles?” se pergunta Bernardet. Divaga: “ Por amor. Paixão de décadas por alguns de seus filmes.” Mas confessa. “Talvez também por uma atitude de reparação.” Em Brasil em tempo de cinema (1967) o Cinema Novo e suas cercanias davam a nota: social e cinematográfica. Bernardet agora, em O voo dos anjos, quer trazer para o centro crítico o que por décadas permaneceu na margem. Os cinemas de Bressane e de Sganzerla, e também o de Ozualdo Candeias e de Aloysio Raulino, citados lateralmente ao longo do ensaio de Bernardet.
“Me interessou foi algo como uma psicanálise da escrita”, escreve Bernardet. Nesta psicanálise ele aduz as relações ora tranquilas, ora tensas, entre aproximação e rejeição com Papai Glauber: Sganzerla primeiro rouba Glauber ( seu cinema “mal-feito” e sua mulher sinuosa, Helena Ignez, que foi casada com Glauber e depois estabeleceu-se com Sganzerla) e depois o mata com um cinema ainda mais radicalmente sujo. Quando Bernardet vai anotando cenas e modelos de filmar de um e outro filme, o leitor muitas vezes não distingue se é Sganzerla ou Bressane, em certa instância o próprio filme descrito se confunde, ou permuta, com outro, criando esta impressão do conceito de autor no cinema. Que autor são “Sganzerla” e “Bressane”, dispositivos desta “disposição de criar” no sentido que dá Bernardet? São o mesmo e outro? Próximos e diversos: duas pessoas que fazem filmes marcados por algumas coisas comuns que se erigem em personalidades, filmes diferentes? Bernardet propõe um devaneio crítico que se estrutura dentro de si mesmo: rigor, paixão; estudo e liberdade. “Não me parece que Cara a cara esteja ‘fundamentalmente baseado’ em Lima Barreto”, anota Bernardet, contestando, ao de leve, uma afirmação do diretor Bressane. De raciocínio em raciocínio, de teia em teia que levanta o edifício de Bernardet, este dá voltas, como muitas vezes é hábito em suas filigranas. “Chegando ao fim deste apêndice, me dou conta de que é preciso rever o comentário inicial sobre o exagero de Bressane ao afirmar que Cara a Cara era fundamentalmente baseado em Lima Barreto. Sim, é bem possível.”
O voo dos anjos talvez seja o mais particular ensaio sobre cinema que se pôde escrever no Brasil. Bernardet é autor e faz-se também personagem. Faz anotações subjetivas com raro teor objetivo. “Lembro-me que a primeira vez que vi O anjo nasceu estava com Joaquim Pedro de Andrade, e fomos tomados na saída do cinema por uma gigantesca gargalhada que nos curvava e que não conseguíamos estancar. A gargalhada era uma descarga histérica após a forte tensão a que o filme nos tinha submetido, mas era igualmente uma imensa alegria e deslumbramento diante do esplendor estilístico de Bressane.” No último movimento de células cinematográficas de O voo dos anjos, Bernardet coroa sua ideia central, as relações psicanalíticas (de psicanálise da escrita) entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, entre Bressane/Sganzerla e Glauber/Nelson Pereira dos Santos. E usa um filme à parte para isto, Noites paraguaias, de Raulino, que cita Vidas secas e O bandido da luz vermelha em cenas. “Anos depois, o Cinema Novo e o Cinema Marginal são reunidos, por Noites paraguaias, por cima das brigas, como heranças benfazejas.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br