A Construção da Personagem Histórica

Conheça o novo livro de Juremir Machado da Silva, "Jango, a Vida e a Morte no Exílio".

24/02/2014 10:09 Por Eron Fagundes
A Construção da Personagem Histórica

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No começo do penúltimo capítulo de Jango, a vida e a morte no exílio (2013), o novo romance do escritor brasileiro Juremir Machado da Silva, o narrador anota: “A terceira pessoa sai de cena. O historiador e o romancista recolhem-se. Entra em campo o jornalista.” Será? Pode ser que as três entidades (e outras mais que a cabeça de Juremir abriga) nunca saem de cena: as entrevistas do fim do livro são convertidas em diálogos de um romance histórico. Jango é uma personagem histórica. Assim como Volnei Correia e Mario Neira Barreiro também são. E o é igualmente a figura do historiador Décio Freitas, certamente um dos espíritos inspiradores de Jango e de outro romance histórico escrito por Juremir, Getúlio (2004). A arte de Juremir está em saber construir com a figura histórica a personagem histórica: há uma autenticidade humana e literária —nesta devassa feita pelo autor de Cai a noite sobre Palomas (1995).

“Jango vai morrer.
Todos os dias, ele espera. Contempla um ponto no horizonte, que pode ser o Brasil, e espera pacientemente. Espera algo que o fará reviver, ressuscitar, explodir.”

Este é o início de Jango. Juremir, lentamente, vai pondo em cena um narrador que busca penetrar no interior de sua personagem histórica. Jango está no exílio e Juremir, um autoexilado em alguns momentos de sua vida, vai para o exílio com Jango: isto ajuda a construir a personagem histórica.

Getúlio não começa diferentemente. Há um narrador que se confunde com a personagem, o discurso indireto (quase direto, pois há uma forma verbal “pensa” no meio) semeia os dados. “Agosto, mês de cachorro louco, pensa Getúlio, desviando os olhos do rosto angustiado do ainda jovem ministro Tancredo Neves, sentado à sua esquerda.” Getúlio está no centro do furacão brasileiro e Juremir, que o estudou em documentos, que refez os cenários de Getúlio no Rio, vai com Getúlio para diante deste furacão de inverno de agosto de 1954.

Mas com Jango, mais do que nunca, o jornalista Juremir entra em ação: Jango é na verdade uma grande reportagem que assume a forma de um romance. O esqueleto de um romance está ali, mas a junção de documentos e informações está mais para um tratado político e histórico; está longe daquela estrutura dramática, de romance mesmo, de Getúlio. No entanto, o escritor Juremir nunca se despega do jornalista. “o presidente Goulart, hoje, no exílio, há de estar em busca do tempo perdido./ Teria lido Marcel Proust em tradução de Mário Quintana?”

Já disse atrás que Décio Freitas, historiador gaúcho, é um dos cérebros inspiradores da vertente histórica da obra de Juremir. No caso de Jango é mais do que isto: invade as páginas como personagem, algo que também já disse na mesma linha atrás. Décio, o homem que conviveu com os principais políticos brasileiros do século XX, ilumina muito da ação pensada que vai em Jango. Um romance pode ser feito de personagens inteligentes, também. “Numa noite, caminhando pelas ruas de Paris, o historiador, advogado e articulista Décio Freitas expande-se, romanceia.” É curioso isto: Décio sempre se queixou, em conversas pessoais, de que gostaria de escrever um romance histórico, afinal era um historiador e  amava a literatura, mas sempre recuava diante do dilema: uma hora teria de criar, inventar, pois as informações históricas são o mais das vezes descontínuas e raramente privilegiam ações cotidianas, neste impasse, dizia Décio, o historiador que ele era não saberia o que escrever. Juremir o fez por seu amigo Décio, e por nós também, que amamos os textos de Juremir e nos deliciávamos com as conversações históricas de Décio. Sem sair da reportagem, do verdadeiro, criou (recriou?) diálogos entre Jango, Décio e Getúlio. Que diria Décio, se estivesse vivo, destes romances histórico-políticos de Juremir? Ou tais romances só poderiam existir sob a forma de Décio morto, como personagem ao mesmo tempo em que como um espectador hipotético d’além-túmulo? Todas estas reflexões, na verdade, fazem parte da estrutura de existir dum romance como Jango, o romance-reportagem-hipótese.

O jornalista Juremir parece compreender a história, muitas vezes, quase como uma zoom (lente de aproximação) temporal: algo que vem para junto do olho (ou memória) e depois se afasta para novamente tornar a aproximar-se, permanecendo constantemente nesta nebulosa de tempo e percepção. Em Jango esta aguda reflexão se dá por algumas inserções na mente de Jango, inserções que ao longo do livro se vão tornando mais complexas desde aquela espera da morte no começo da narrativa. Lemos: “Para ele, contudo, a sensação é paradoxal: foi ontem, faz tanto tempo, foi agora mesmo, parecem séculos, tudo tão longe, tudo tão vivo na sua mente, nos seus olhos, no seu corpo.” Jango, o romance e a personagem, encarna esta lembrança-ação que é o presente histórico: foi há muito tempo, mas está diante de nós.

Para comparar, lembro dois outros processos de construção da personagem histórica que se opõem ao de Juremir. Sinval Medina, outro autor brasileiro, também foi aos arquivos (mais escassos) para escavar a vida de um tropeiro português em atividade no Rio Grande do Sul, para edificar seu romance O cavaleiro da terra de ninguém (2012); como Juremir, também se pôs muito em sua narrativa; mas optou por contar sua história como se fosse um cronista antigo, fugindo, pois, à objetividade jornalística. O romancista peruano Mario Vargas Llosa, em O sonho do celta (2010), resgata as aventuras do irlandês Roger Casement no início do século XX, pela África e pela América do Sul; mas Llosa é o romancista clássico, adota uma liberdade ficcional muito maior que aquela de Medina e mais ainda que a de Juremir. Em Jango não se dirá que o jornalista retira do palco o romancista e o historiador, mas os direciona, permitindo uma peculiar construção da personagem histórica.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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