Robert Crumb: O Critico Literario em Quadrinhos
Kafka de Crumb mostra, no fim, a incompreensao para com Kafka (a segunda metade do seculo XX) em que as grandes certezas totalizantes chegaram a escrever a historia
Sob a aparência de adaptar para histórias-em-quadrinhos algumas das principais visões literárias do tcheco Franz Kafka (O processo, O castelo, A metamorfose, Um artista da fome, A toca, sua carta ao pai, suas cartas a mulheres e mesmo excertos da vida burocrática e literária de Kafka), o desenhista Robert Crumb e o escritor David Mairowitz constroem um ensaio em quadrinhos sobre o tão aludido universo kafkiano. Não mais um ensaio, entre tantos: um dos mais agudos; um daqueles instantes —estéticos— em que o leitor mergulha na mesma atmosfera abissal e sem volta de quando esteve a ler os textos de Kafka.
Nas páginas 72 e 73 da edição da Relume Dumará está na verdade o centro dos quadrinhos Kafka de Cumb (2000). É uma meditação sobre o ato de escrever em Kafka. Na foto da página 72 o escritor está sentado à sua escrivaninha, as pessoas circulam por ali, uma mulher parece gritar; ele apoia um dos cotovelos sobre a mesa enquanto segura com a mão um dos lados do queixo e a outra mão suporta uma caneta, o cérebro vaga. O texto sublinha a imagem: “Quero escrever e existe um constante tremor em minha testa”. A foto que encima a página seguinte mostra um Kafka de olhos vidrados: parece o grande pulo para o mergulho perigoso em seu tipo de escrita. O texto anota: “A única solução era uma espécie de auto-hipnose ou ‘emigração interna’, que simultaneamente o desligava do mundo e permitia-lhe entendê-lo...” Como entender este processo estranho, novo, ainda que simples? “Cada palavra olha em volta, em todas as direções, antes de se deixar ser escrita por mim.” vai semeando o texto. Segundo Crumb/Mairowitz, é este processo de encontro, difícil e direto, depurado e sem rebuços, entre o escritor e a palavra que faz de Kafka, Kafka. “Escrever... é um sono mais profundo do que a morte...” lembram os quadrinhos na voz de Kafka. É neste sono, meio pecaminoso, embora pudico e falsamente asséptico, que Crumb, o quadrinista incômodo, quer mergulhar como um espelho crítico de seu irmão theco.
No romance de ideias Respiração artificial (1980) o argentino Ricardo Piglia inventa um possível encontro entre Adolf Hitler e Franz Kafka, num dos primeiros anos do século XX. Piglia escreve, por seu narrador: “Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia fazer.” E acrescenta, com sarcasmo: “Nem o próprio Hitler, tenho certeza, acreditava em 1909 que aquilo fosse possível. Mas Kafka sim. Kafka, Renzi, disse Tardewski, sabia ouvir. Estava atento ao murmúrio enfermiço da história.” Seria o universo literário de Kafka uma antecipação do mundo nazista de Hitler, um Estado de terror, talvez com uma violência mais sutil e incógnita que aquela do mundo real?
Kafka de Crumb mostra, no fim, a incompreensão para com Kafka (a segunda metade do século XX) em que as grandes certezas totalizantes chegaram a escrever a história. Assim, pela visão do socialismo ao modo soviético, o “burguês Kafka” estava transformado numa peça “obsoleta”. Autor de Mr. Natural (1967), Minha vida de Crumb (2005) e A mente suja de Crumb (2013), Robert Crumb dá-nos um Franz Kafka em retrato para o fundo. Retratado no filme Crumb (1994), de Terry Zwigoff, sabe-se que Crumb, por algumas identidades, é o dente incômodo do bem-estar comercial dos quadrinhos: como Kafka o é da literatura mais habitual e fácil. Só poderia dar o que deu Kafka de Crumb, onde um artista pinta o outro como se estivesse pintando a si mesmo, no fundo uma adaptação de literatura em quadrinhos que é muito mais uns quadrinhos literários.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br