O Mais Literario dos Filmes Brasileiros
Certas coisas de Sao Bernardo podem remeter a Uma mulher suave (1969), de Robert Bresson
São Bernardo (1972), o filme que o cineasta brasileiro Leon Hirszman extraiu do romance brasileiro homônimo publicado em 1934 pelo escritor alagoano Graciliano Ramos, é o mais literários de nossos filmes. O texto extraordinário de Graciliano é um recurso amiudado da narrativa de Leon, tanto nos esparsos e despojados diálogos quanto na voz-over do protagonista que narra o filme; mas é sobretudo na montagem em rigorosos planos fixos que criam a introspecção que Leon busca suas instâncias literárias para o cinema. Mas o constante uso do texto literário e a obsessiva estaticidade do plano não põem na tela o que em várias “ilustrações literárias” da época era estorvo e mofo, o agudo senso cinematográfico de Leon transforma o esqueleto literário no mais puro cinema.
Leon começa seu filme pelo segundo capítulo do romance. Reproduz na voz-over de Othon Bastos, o ator que vive “com nervos diferentes dos nervos dos outros homens” (texto do final do livro e do filme) a personagem de Paulo Honório, o terceiro parágrafo deste segundo capítulo, integralmente. A primeira imagem do filme é um plano fixo de frente de Othon, o texto vai sendo dito pausadamente, lá pelas tantas há um corte para um plano fixo de Othon/Paulo de costas. No fim da sequência a personagem levanta-se e dirige-se para a varanda. Em todo o filme Leon funde, dialeticamente, como gostava, alguns de seus conceitos de cinema. Há a montagem de atrações de Eisenstein, com enquadramentos planificados que se contrapõem. E há aquela montagem bressoniana, áspera e seca, onde as imagens vêm a ter valor pela força de sua posição e relação, uma imagem que vibra diante da outra produz o significado cinematográfico. Certas coisas de São Bernardo podem remeter a Uma mulher suave (1969), de Robert Bresson. E outro cineasta do espírito, o japonês Yasujiro Ozu, pode ser evocado acerca de São Bernardo: na cena em que Paulo Honório, Dona Glória e Madalena chegam diante da pensão onde as duas mulheres se instalarão vemos roupas no varal, o cotidiano de Ozu em grau máximo (lembremos que roupas-no-varal era um ícone visual de Ozu).
Leon abandona o primeiro capítulo do livro, onde o narrador, Paulo Honório, revela sua intenção de contar suas memórias assim como quem dirige sua fazenda, pela divisão do trabalho, onde um cuidaria das questões morais, outro da linguagem, mais outro da tipografia, um outro dos arabescos literários, o narrador ficaria com os rudimentos da realidade. Mas o espectador, ao dar com aquele “continuemos”, sabe que havia alguma coisa antes: no entanto, nada que não pudesse ser retomado mais adiante. O “continuemos” que abre o filme indica uma linha pontilhada antes. Assim como aquele adormecer de Paulo Honório no fim do filme (imagem e texto) cria as reticências entre parênteses: a imaginação dentro da cabeça da personagem.
Leon filmou seu São Bernardo com a cabeça em textos do crítico Antônio Cândido sobre o livro de Graciliano. E isto acentua as características intensamente literárias da cinematografia de Leon haurida em São Bernardo. O “espírito de jornada” observado por Cândido como conveniente ao leitor de Graciliano é o elemento-chave da estrutura cinematográfica do filme de Leon. A maioria dos planos são estáticos em São Bernardo, mas não é algo próximo da pintura, como no russo Serguei Paradjanov; há uma mobilidade que vem um pouco deste espírito de jornada de leitor que Leon endossa. Não há o plano fixo liberto do movimento da montagem. Nem haverá movimentos de câmara que desestruturem a estática calculada de Leon. Um dos poucos planos móveis é aquele em que, depois da viagem de trem com Dona Glória, Paulo Honório acompanha as duas mulheres (Dona Glória e a sobrinha dela, Madalena, por quem ele se interessa para casar-se) à pensão onde elas ficarão: mas a câmara se cola às costas de suas personagens e às suas palavras e é como se a sintaxe do movimento se abstraísse; ou seja, estes poucos movimentos não ferem a estética da estática imposta com rigor por Leon.
Sabemos que Othon é um Paulo Honório preciso e profundo. Mas deve-se realçar o rosto e os gestos expressivos de Isabel Ribeiro na pele de Madalena. E Leon trabalha com rara adequação estilística o surgimento em cena da personagem de Madalena. O primeiro plano em que ela aparece se dá na estação, quando Dona Glória e Paulo Honório desembarcaram do trem e Madalena está recepcionando sua tia e é apresentada a Paulo; o rosto de Madalena é ocultado do espectador, pois a atriz Isabel é filmada de lado, o mais claro dela é a voz da intérprete, suave e esvoaçante no cenário rural da narrativa. Os planos seguintes seguem impedindo o acesso do observador à fisionomia da personagem. Inclusive no plano que vê Paulo Honório e as duas mulheres caminhando para a pensão não há rostos: são filmados pelas costas. Lentamente vamos percebendo visualmente como a identificação do rosto de Isabel é fundamental para a composição da personagem de Madalena. Até que deparamos com aquele notável primeiro plano fixo de Isabel murmurando as confissões piedosas e compadecidas de Madalena: “—As casas dos moradores, lá embaixo, também são úmidas e frias. É uma tristeza. Estive rezando por eles. Por vocês todos. Rezando... Estive falando só.” Depois de seu monólogo místico e misterioso, que se cruzava alienadamente com as altercações práticas de Paulo Honório (a que ela não respondia e seguia divagando), Madalena/Isabel vai para o fundo do plano, cobre-se com o manto e desaparece; na sequência seguinte a personagem está em seu leito de morte. A personagem de Madalena, nas mãos de Leon, tem uma santificação estranha que a aproxima da Irene de Europa 51 (1952), do italiano Roberto Rossellini, e da Jeanne de Pickpocket (1958), de Bresson.
Historicamente, São Bernardo, o filme de Leon, se situa naquela confluência de intenções contraditórias no cinema brasileiro identificadas pelo ensaísta brasileiro José Mário Ortiz Ramos em Cinema, Estado e Lutas Culturais —Anos 50, 60, 70 (1983). Na época o governo militar, para combater a pecha pornográfica do cinema brasileiro, incentivou a feitura de filmes “artisticamente dignos” inspirados em obras literárias de prestígio. Aparentemente, como uma homenagem aos oitenta anos do nascimento de Graciliano Ramos, um escritor morto havia quase vinte anos, o São Bernardo de Leon poderia encaixar-se entre estes filmes bem comportados e subservientes ao regime. Tinha até mesmo uma fidelidade textual a um romance escrito nos anos 30 como poucas vezes se teve a oportunidade de ver no cinema brasileiro. Mas alguma coisa “saiu errada” nesta relação entre o filme de Leon e o sistema econômico-cinematográfico vigente. Ao assumir o retrato que Graciliano faz com agudeza e transparência dum instinto de propriedade num indivíduo característico, Leon radiografa a estagnação do capitalismo brasileiro atrasado e mexe com certas coisas incômodas ao sistema; o Paulo Honório de Leon não é, pois, um Paulo Honório rural-nordestino da década de 30 do século XX, mas sim um Paulo Honório da paralisia política e social do início dos anos 70 e da própria melancolia que vem desta paralisia, pois a acuidade metafórica de Leon é tão profunda quanto objetiva em São Bernardo. O brasileiro dos anos 70 costumava fazer como Paulo Honório no fim do filme, permanecer imóvel às escuras, até sabe-se lá que horas, até o momento em que, tomado pela fadiga, pudesse reclinar a cabeça na mesa e cochilar uns minutos. Era o que então se fazia. E podíamos fazer isto enquanto líamos, parafraseando, Graciliano Ramos nos mesmos problemáticos anos 70.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br