As Delicias de Ler
O romancista Alberto Mussa tem, na essencia de seu texto, as delicias de propor o prazer de ler
O romancista Alberto Mussa tem, na essência de seu texto, as delícias de propor o prazer de ler. Isto nasce, primeiramente, com sua linguagem, que não se vulgariza em concessões narrativas e no entanto sabe comunicar-se, dentro de sua estética rigorosa, com as audiências ávidas de boas histórias, curiosas e intrigantes, como as mil a uma noites e os decamerões, embora sem a extensão destas antigas. Depois se desenvolve numas inter-relações entre as personagens que atrai fortemente o observador. Linguagem e personagem se mimetizam.
Assim se passa com A primeira história do mundo (2014), romance ou novela, ou romance-novela, que é o terceiro volume dum projeto de Mussa de contar a história da cidade do Rio de Janeiro por alguns crimes históricos. Se O trono da rainha Jinga (1999) ia ao século XVII e O senhor do lado esquerdo (2011) abordava os inícios da República brasileira pelo assassinato dum figurão da política dentro dum bordel, A primeira história do mundo vai recuando, vai à nossa primeira história de civilização, um crime cometido contra um indivíduo que vivia no Rio no primeiro século do descobrimento. Quatro séculos separam o relato de Mussa e o possível fato a que se refere; este dado temporal acentua o entretenimento mítico e ficcional que já se insinuava nas duas primeiras obras do projeto, mas não retiram do narrador o controle de dados que lhe permitem dar verossimilhança e autenticidade à sua incrível trama.
“Estamos na cena do crime”, começa assim a voz narrativa. O leitor é posto dentro da cena. Como Machado de Assis, Mussa em vários momentos interpela o leitor, convida-o à reflexão. “Francisco da Costa, serralheiro, casado na cidade com Jerônima Rodigues, é a vítima”, reporta-se mais adiante, na mesma página. “A cidade era então amuralhada” observa-se, e muito do cenário dum Rio quinhentista é capturado pela imaginação de precisão e criatividade linguísticas do ficcionista.
Navegando em referências literárias um pouco irônicas, por escritores díspares como o italiano Dante, a inglesa Agatha Christie e o americano Edgar Allan Poe, Mussa diverte o leitor com aguda sensibilidade e profunda sabedoria de natureza estética e histórica. “Os que me acusaram de ter imitado Dante e a estrutura do Inferno não perceberam, na verdade, que me inspirei em Agatha Christie para solucionar essa contradição, a incompatibilidade do caráter dos suspeitos e o exame das circunstâncias do crime.”
Pela literatura engenhosa de Mussa, um crime não solucionado há uns quatro séculos tem seu desfecho: ao contrário da vida, que segue sempre, um livro precisa dum desfecho. “Logo, Francisco da Costa foi morto com flechaços disparados por um bando de tamoias.” Mas a morte do assassinado é um pré-desfecho. O desfecho mesmo é o estupro da esposa do falecido pelo mameluco que encontrou o corpo do morto, um estupro que tem seu desenvolvimento de maneira inesperada (ou nem tanto). “É provável que Jerônima Rodrigues, nas primeiras investidas, tenha rechaçado o ímpeto de Simão Berquó. Tais lutas, todavia, são quase sempre vãs. E ela, assim, naquela circunstância extrema, diante da realidade irreversível, se entrega, se permite, se deixa levar pelo prazer de uma inocente perversão.” A literatura será, pelos artifícios de linguagem, um pouco isto: uma inocente perversão?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br