Os Tumultos de Godard
Em Carmen Godard lan?ou uma atriz de vinte anos, uma holandesa chamada Maruschka Detmers
É em Jean-Luc Godard que o cinema atinge o ápice de uma de suas revoluções. Definitivamente, ele não sabe filmar diegeticamente: ele desarticula a habitual progressão narrativa, até na utilização da música dentro do processo fílmico. Escreve o ensaísta (e cineasta) francês Éric Rohmer em Ensaio sobre a noção de profundidade na música; Mozart em Beethoven (1997; um ensaio sobre música): “Godard é como o violoncelista que decreta, por conta própria, que faz parte da mobília urbana. Seus filmes, como se sabe, são feitos de colagens de objetos, de paisagens, de textos e, por que não, de músicas. Uma frase de Beethoven tem nele tanto cabimento quanto outra de Platão, ou de Raymond Chandler. A música não é utilizada como um elemento fílmico de apoio. Ela é simplesmente filmada, como o podem ser as árvores, o mar, o céu. Faz parte do mundo.”
Em Prenome Carmen (Prénom Carmen; 1983) Godard vai usar o Quarteto opus 132, de Ludwig van Beethoven, em tempo integral ao longo do filme. A música é uma peça da câmara, lado a lado com os tiroteios, as buzinas de carros, as aproximações eróticas, o luxuoso hotel, o mar em rebentações, a cidade à noite; a música no filme de Godard obedece o mesmo sistema estabelecido por Godard para seu fotógrafo, Raoul Coutard, um sistema de esculturas, tão artificial e tão natural ao mesmo tempo. Godard, escreveu Rohmer lembrando que é algo de que todos sabem, faz colagens das partes de que se compõe o universo. Em Carmen estas colagens, instintivas e arbitrárias, atinge um de seus pontos mais notáveis, chegando a uma unidade construída que não desdenha dos aspectos demolidores do estilo desestruturante de Godard.
Se comparamos o Godard da década de 80 com o Godard dos anos 60 (A chinesa, 1967, por exemplo), veremos que as travessuras jovens do cineasta se converteram em melancolia e lentidão, há menos tagarelice e mais concentração de dizeres, embora o realizador permaneça (nunca o deixou de ser, desde O desprezo, 1963) um filósofo do cinema, posição que ele acentua em Elogio ao amor (2001).
Numa dedicatória final, Godard oferece Carmen à memória dos pequenos filmes, que são na verdade, com sua precariedade de produção, os autênticos inspiradores de toda a obra do diretor francês. É na liberdade dos pequenos orçamentos que Godard edificou as possibilidades dum filmar revolucionário, sem peias, uma nova relação entre as imagens.
Em Carmen Godard lançou uma atriz de vinte anos, uma holandesa chamada Maruschka Detmers; ela se tornaria uma peça de escândalo do cinema da época quando alguns anos mais tarde ousaria encenar para o italiano Marco Belocchio em Diabo no corpo (1986) uma das felações mais comentadas da história do cinema. Em Carmen Godard e o espectador se contentam com espiar seus seios pontiagudos e seus fartos pêlos vaginais.
Godard, como em outros filmes seus, tem uma função de intérprete em Carmen, levando seus pendores metalinguísticos a um ponto mais secreto, obscuro mesmo. Godard interpreta um produtor de cinema que, no começo do filme, está doente num quarto de hospital e recebe a visita de sua sobrinha (Maruschka) interessada em obter patrocínio para um filme que ela e seus amigos querem fazer. Sombrio e desolado como um fim de tudo, a figura física de Godard é uma imagem-sósia de seu próprio filme: duro e amargo; duas expressões despontam de sua máquina de escrever naquele quarto hospitalar, “mal visto” e “mal falado”, conceitos da marginalidade de iconoclasta de Godard.
Naqueles anos, outros filmes extraíram sua inspiração da personagem de Carmen, de Merimèe e da ópera de Bizet, entre eles um cinebalé do espanhol Carlos Saura e uma realização do italiano Francesco Rosi. Mas a Carmen de Godard é a única verdadeiramente nova a partir de um velho assunto: a arte de Godard de remexer em velhos baús culturais está intacta em Prenome Carmen.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br