O Mais Belo Horror Brasileiro

Jean-Claude Bernardet é autor das teorias mais deslumbrantes sobre filmes escritas em nossa terra

09/09/2015 09:23 Por Eron Duarte Fagundes
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Jean-Claude Bernardet, talvez o mais cortante dos analistas brasileiros de cinema, é o intérprete central de FilmeFobia (2009), este objeto cinematográfico estranho e inclassificável dirigido pelo paulista Kiko Goifman. Bernardet é autor das teorias mais deslumbrantes sobre filmes escritas em nossa terra. Mas sua participação como “imagem” em nosso cinema não é novidade: ele teve aparições preciosas em filmes como Orgia, o homem que deu cria (1970), de João Silvério Trevisan, Ladrões de cinema (1977), de Fernando Coni Campos, e P.S. Post Scriptum (1981), de Romain Lesage. Em FilmeFobia ele se autoficciona, como o próprio Bernardet revela em seu blog na internet: ele vive um diretor de cinema que documenta em busca da imagem verdadeira a exacerbação das fobias dos fóbicos em sequências em que estes fóbicos aceitam, por desafio, desejo de cura ou exibicionismo, participar de um filme onde suas fobias são expostas visceralmente —os medos de aranha, de avião, de palhaço, de agulhas, de sangue, de anão, de pombo, de ratos desfilam crua e sombriamente pelas imagens. Bernardet se autoficciona: isto é, é um pouco de Bernardet, um homem de cinema, um experimentador intelectual da imagem, é uma extensão do Bernardet real, mas é ao mesmo tempo o Bernardet pré-existente ao filme e o Bernardet que se vai construindo com o filme. Algo parecido Bernardet fez na literatura ao escrever sua novela A doença, uma experiência (1996), o relato de um homem soropositivo. Bernardet é soropositivo, mas sobreviveu ao “genocídio da AIDS”; em FilmeFobia as sequelas da sorpositividade de Bernardet são usadas impiedosamente, como a fobia do sangue (podre) e as cenas oftalmológicas em que se acompanha o olho de Bernardet à beira da cegueira e despedindo-se tragicamente de suas últimas imagens (“É muito duro, Kiko”, diz o ator Bernardet ao diretor Goifman).

Quem dirige FilmeFobia? Segundo os créditos, é Kiko Goifman. Os roteiristas Kiko e Hilton Lacerda partiram duma ideia de Bernardet segundo a qual a única imagem verdadeira é a do fóbico diante de sua fobia; esta oração é repetida como fixação (fobia?) por Bernardet ao longo do filme. Kiko rodou um documentário, 33 (2003), onde ele se autoficcionava buscando sua mãe biológica, pois Kiko tem pais adotivos. Bernardet alcunhou o trabalho de Kiko de documentário de investigação. Em FilmeFobia estamos diante dum documentário de terror; poucas vezes o cinema brasileiro chegou a uma atmosfera tão exemplar. Já no início de FilmeFobia Bernardet, ou o diretor de cinema que ele interpreta, liga inevitavelmente o cinema ao filme de horror, diz que todo cinema está ligado à narrativa de horror, evoca suas primeiras e adolescentes visões de Roma, cidade aberta (1945), do italiano Roberto Rossellini, a fantasias de horror, nada da clareza neorrealista. Bernardet, ou o diretor que ele interpreta, está dentro do filme, mas acaba muitas vezes saindo para um making of onde assume a direção do pseudoverdadeiro documentário ao lado de Goifman. FilmeFobia lida com os limites da empulhação artística, como faz o norte-americano David Lynch, mas com um outro poder de persuasão, que vem da ligação da natureza ingênua da direção de Kiko com o cartesianismo europeu-brasileiro de Jean-Claude.

Para discutir o genético do horrível como essência do cinema, Jean-Claude e seu diretor-metáfora (será a fobia da direção em Jean-Claude uma metáfora?) Kiko Goifman chamam à colação o autêntico especialista do gênero no cinema brasileiro, José Mojica Marins. Numa sequência em que Jean-Claude indaga de José Mojica a questão impressiva das imagens está criando no documentário dentro do filme, vemos um homem atormentado pela fobia dos ratos, amarrado e manietado, enquanto Jean-Claude vai acompanhando com sadismo diretivo o êxtase dos gritos do homem; a câmara se hipnotiza no corpo nu do fóbico, seu desespero crescendo diante dos ratos, vê sua genitália que parece excitar-se com sua própria fobia, observa-se que Bernardet se aproxima tensamente de seu objeto-imagem, o fóbico, segura-lhe as mãos, abraça-o, então imagina-se que a tortuosa sexualidade de Bernardet se confronta com a lascívia dos gemidos fóbicos do homem. No fim da cena, Mojica nota a relação entre sexo e medo no corpo do fóbico, o medo estranhamente mantém firme o sexo do fóbico. Convenhamos, toda a cena, Bernardet, Mojica, a tortura erótica do fóbico, os planos dirigidos por Kiko, é um achado no seio da banalidade do cinema (nesta relação de sexo e medo, lembro que meu primeiro orgasmo, aos onze anos de idade, deu-se ao fitar as calcinhas duma jovem professora de inglês durante uma prova em sala de aula; paralisado pelo medo de não saber nada na sabatina, veio-me o inesperado gozo, algo como uma fobia no sexo ou do próprio sexo, que é o que me parece ocorre na aludida cena de FilmeFobia).

Quem é o criador, quem é a criatura em FilmeFobia? Bernardet engendrou Kiko desde seu fascínio pelo documentário investigativo de 33? Ou Kiko, tomado de um alucinógeno, compôs seu Bernardet, desde os escritos de cinema de que ele certamente é devoto?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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