A Densidade Plastica de um Filme
Em A idade da reflexao Michael Powell adota uma juvenilidade e uma inocencia quase impagaveis do artista
O inglês Michael Powell tem a agudeza plástica do espaço cinematográfico. Um certo rigor plástico britânico em que a fotografia, o enquadramento e a utilização dos cenários produzem, de maneira inesperada, uma densa plasticidade de filmar. Esta peculiar estética cinematográfica topa um certo êxtase visual em A idade da reflexão (Age of consent; 1969); mais até do que Neste mundo e no outro (1946) e A tortura do medo (1960), suas duas outras obras-primas que o espectador pôde conhecer por aqui e onde sua extravagância enviesada se exercitou no mais alto grau, é em A idade da reflexão que Powell se associa ao mundo nobre da pintura para produzir seu cinema único e genioso. E esta pintura cinematográfica de A idade da reflexão se associa com a filmagem ao natural, o mar e mata duma ilha de corais na Austrália, onde se filmou a história, ajudam a compor as cores necessárias para esta associação pictórica de imagens.
Bradley Morahan é a personagem do pintor, madurão, bem conceituado entre os seus, vivendo na sofisticação de Nova Iorque; mas ele chegou a seu esgotamento vital e criativo, e pensa em tornar à sua Austrália natal, em busca das origens e da natureza. Numa cena do início do filme ele está na cama com uma mulher, só pensa em sexo, enquanto na televisão rola uma entrevista que ele deu, sua parceira aos risos quer afugentar-se do sexo para ouvir o que ele disse, ele insta na busca carnal na cama, mas... Então a câmara de Powell se concentra num trecho da entrevista. Perguntam sobre seus projetos. Ele responde, a vagar dentro de si: “Não tenho projetos. Apenas andar por aí e olhar. Talvez encontrar uma praia e vasculhá-la.” O repórter dá uma breve gargalhada e questiona: “Como Gauguin?” O pintor, e meio-sorriso e entre irônico e disfarçadamente agastado, responde em pausas: “Não como Guaguin... como eu...” A sequência do filme vai levar a personagem a uma praia numa ilha australiana; lá ele encontra uma jovem que vende pescados e, então, leve e lentamente, o pintor a adota como modelo de seus trabalhos. Ela vive com a avó, uma espécie de bruxa velha de assustador conto de fadas, a bruxa naturalmente reprime violentamente a conduta mais natural da jovem. Há também um amigo do pintor, esquisito e galanteador, que está ali para perturbar as atividades do artista em seu isolamento. O encontro entre o artista e a donzela produz uma transcendência que está sempre à beira do fascínio físico (descoberto primeiro por ela, tardiamente por ele) mas é no fundo uma profundidade estética. Os intérpretes James Mason (de A cruz de ferro,1977, de Sam Peckinpah) e Helen Mirren (de A rainha, 2006, do diretor inglês Stephen Frears, mas no filme de Powell, em 1969, ela está na força de seus 23 anos) correspondem plenamente às personagens; ele, um pintor em circunspecção, ela, exultante numa sensualidade quase metafísica casada com a natureza em torno.
As relações entre a arte e a vida a partir do cruzamento das obsessões dum pintor e as necessidades humanas dum modelo já foram temas recorrentes no cinema, uma arte também de natureza plástica. A bela intrigante (1991), do francês Jacques Rivette, expõe esta crueldade inconsciente do artista com sua jovem modelo. Em Retrato de uma jovem em chamas (2019), a francesa Céline Sciamma aponta a interferência das relações familiares no caso platônico da arte quando uma pintora se obsessiona com a figurativo de sua modelo. Em A idade da reflexão Powell adota uma juvenilidade e uma inocência quase impagáveis do artista, mas nunca descarta seu oculto coeficiente de perversidade para com a vida. O corpo nu duma jovem Helen Mirren, vamos convir, é um dado estético de erotização: carne e espírito em equilíbrio com o mar, a mata e a mente.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br