O Espolio de Joao Guimaraes Rosa

Eles Eram Muitos Cavalos tem trechos de densidade verbal extraordinaria

03/11/2022 18:23 Por Eron Duarte Fagundes
O Espolio de Joao Guimaraes Rosa

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O escritor Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, a mesma cidade mineira em que nasceu o fundador do cinema brasileiro de fato relevante, o cineasta Humberto Mauro; algumas décadas separam os nascimentos do homem de cinema e do homem de letras, Mauro é um nome definitivo de nosso cinema, Ruffato  começou há algumas décadas a obter os aplausos dos analistas de nossa literatura. Uma constatação: Cataguases parece uma cidade predestinada culturalmente.

Eles  eram muitos cavalos (2001) faz um cruzamento de duas estradas narrativas que buscaram uma maneira diferente de contar histórias na literatura brasileira no século passado. Uma ou outra criação de texto parece buscar no espólio de outro mineiro, Guimarães Rosa, sua fidelidade estilística; o arcaico, o popular e o inusitado se fundem na sintaxe de Ruffato para erigir uma frase de poética pessoal. A outra via deste cruzamento vem do estilo de anotações fragmentadas (muitas, breves) que é a marca de alguns romances do paulista Ignacio de Loyola Brandão (Zero, 1975; O beijo não vem da boca, 1985). Entre as veredas linguísticas de Rosa e as notas semijornalísticas de Loyola Brandão, Ruffato faz trafegar seu verbo; seu livro só não é um pastiche destes autores porque ele tem o dom de manusear a seu modo a língua — suas citações são subversivas, subvertem a influência.

Como ocorre com Ulysses (1922), do irlandês James Joyce, em Eles eram muitos cavalos trata-se da vida de um dia numa cidade. Se Joyce utiliza uma personagem central de ligação, Ruffato destrói esta “possível possibilidade”, pois as criaturas que aparecem em seu livro como flashes duma máquina fotográfica não são propriamente personagens, mas situações e imagens-em-palavras. A verdadeira personagem da narrativa de Ruffato é a cidade de São Paulo; o leitor e o narrador são dois amigos sentados a uma janela que observam (como se dispusessem duma teleobjetiva) diversas vidas em determinados instantes na grande metrópole. Eles eram muitos cavalos tem trechos de densidade verbal extraordinária: aquele momento 11, denominado Chacina 41, contada sob o ponto de vista de um cão, exacerba nos limites da linguagem. O livro apresenta sequências de comicidade criativa: aquelas mensagens que a mulher traída deixa na secretária eletrônica da jovem amante de seu marido (começa xingando-a desmesuradamente e depois muda a tática, esculhambando com o marido e sua velhice para fazer a outra desistir). Mas há também momentos mais cansativos, como aquele do motorista de táxi que fala interminavelmente para o passageiro (um ouvido sem presença “corpórea” em cena).

Ao ler o título, extraído duns versos de Cecília Meireles, o leitor observa o incomum da frase, trocadilhando: eles eram muitos cavalos poderia ser substituído por eles eram muito cavalos, em que o substantivo (cavalos) vira adjetivo (sinônimo de bruto, mal-educado, estúpido) e o pronome indefinido (muitos) é agora um advérbio sem plural (muito). Assim, desde a capa o livro de Luiz Ruffato se inscreve sob o signo da linguagem.

 

NOTA (acrescida em 12.10.22):

“11. Chacina nº 41

Só empós escapar ligeiro por entre valas fétidas e becos sonolentos, escuridões e clareiras, é que, encorajando-se, tornou ao revés. Já ninguém não havia extorquindo a manhã nascitura.”

“25. Pele telefone

‘Oi, aqui é a Luciana. Deixe seu recado após o sinal’.

Vaca! Puta! Cadela! Desgraçada! Piranha! Puta! Puta! Puta!

.....

Mas aceite um conselho, um só: ele não é nada disso que está mostrando pra você...”

“41. Táxi

...

Quem é o gato?, indagavam. Acabei concordando, uma coisa ridícula! Falei com a patroa, ela disse, Que isso, Claudionor!, Claudionor sou eu. Que isso, Claudionor!, daqui a pouco elas vão embora de casa, ficamos só nós dois, velhos, você gosta do retrato, ele vai ficar lá...”

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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