A Ao Dentro do Carro; Ou o Cinema-Automvel
Muitos podero confundir a ao cinematogrfica de Ces Raivosos com aquilo que o cinema americano habitualmente faz. Nada disto.
A imagem-calafrio (ou o pesadelo sob cinema) que caracteriza a obra cinematográfica do italiano Mario Bava é em parte deixada de lado na exuberância narrativa do policial Cães raivosos (Cani arrabbiati; 1974). Há desde o início uma ação objetiva e constante que foge àquela contemplação do fantástico em que Bava educou seu espectador. O horror metafísico está ausente. Mas isto é somente aparência, definida na expressão “em parte”. Bava no fundo permanece o mesmo, embora se altere: a imagem-calafrio surge por trás de tudo, mesmo que ela se revista de coisas mais violentamente concretas ou duma concretude violenta que em seus outros filmes; se o calafrio de Lisa e o demônio se insere por dentro de nossa alma, o calafrio de Cães raivosos é mais epidérmico porém não menos aterrador e contundente. É como se Edgar Allan Poe visitasse Ernest Hemingway: ambos aparentemente distantes mas próximos em sua americanidade.
Cães raivosos começa a todo o vapor. Três homens assaltam uma firma e na fuga matam a uma moça, conduzem uma refém e no caminho, ao trocar de carro, sequestram também um senhor e uma criança que estaria muito doente e dorme o tempo todo sob sedativos. A narrativa segue sem pestanejar neste vapor delirante. A ação se passa quase inteiramente dentro do carro em que os bandidos levam seus três reféns. A utilização do carro como elemento de linguagem (que é o que de fato se dá) remete a Viagem à Itália (1953), do italiano Roberto Rossellini, e aos filmes recentes do iraniano Abbas Kiarostami. Mas a forma como Bava se vale do carro é de outro naipe; o efeito do carro em cena é autenticamente vertiginoso.
Bava define bem os três psicopatas de sua história: um mentor intelectual e dois trogloditas, um deles perigosamente lúbrico que acaba eliminado pelo “intelectual” sob as lágrimas do terceiro componente, amigo do eliminado. A inserção dentro do carro duma caroneira tagarela (que é também eliminada, mas pelo homem da faca, o terceiro componente chamado Bisturi) é um dos pontos da diversão cinematográfica muito italianíssima: um primor de construção cinematográfica, entre tantas do filme.
Pode-se dizer que a reviravolta final da narrativa é um genuíno ato de subversão. E só pode adquirir consistência nas mãos de Bava, pois em outras mãos poderia soar forçada e artificiosa. Um achado de roteiro. Preparando ou semeando o final revirado, Bava introduz alguns excertos de imagens que vão indicando uma reviravolta que se pressente mas que não se sabe. Estes excertos incluem uma mulher nervosa que fala ao telefone com a polícia, a constante referência à preocupação do motorista sequestrado com o cobertor da criança que o bandido-chefe quer tirar de cima do corpo adormecido do infante.
Muitos poderão confundir a ação cinematográfica de Cães raivosos com aquilo que o cinema americano habitualmente faz. Nada disto. Bava subverte esta ação. E põe no chinelo quase tudo o que os americanos fizeram ao longo dos anos em matéria da ação cinematográfica.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br