O Corte Entre Sombras
Talvez o principal elemento de linguagem cinematografica de A Sombra do Pai (2018), filme dirigido pela brasileira Gabriela Amaral Almeida, seja o corte nas sombras, um artif?cio de montagem que permite a cineasta fazer escorrer os momentos dos cortes
Talvez o principal elemento de linguagem cinematográfica de A sombra do pai (2018), filme dirigido pela brasileira Gabriela Amaral Almeida, seja o corte nas sombras, um artifício de montagem que permite à cineasta fazer escorrer os momentos dos cortes (que é a separação e a junção entre os planos) pelas sombras da imagem que ela usa com um rigor e um sabor expressionistas; Gabriela executa este seu plano cinematográfico com grande precisão, nunca deixando escapar o ritmo de contar sua história; esta precisão de filmar suas imagens, embora se assemelhe a uma matemática estética, adota uma certa libertinagem sensorial para mergulhar naquilo que é inconsciente e flui nas ações das personagens.
A sombra do pai se caracteriza como um filme de horror, um filme cuja função antes de tudo é trazer o arrepio para dentro da sala. Gabriela não se furta a fazer citações aos clássicos do horror, do fantástico. Ela própria declarou, ao apresentar seu filme para debates em Porto Alegre, que, nascida em 1980, se criou vendo os filmes do gênero: sabemos que na década de 80 as produções de terror, da indústria aos filmes B ou independentes, tiveram larga aceitação junto ao público. Mas Gabriela não faz o habitual filme de gênero tosco e escapista; A sombra do pai é um achado gótico dentro do cinema brasileiro, propondo-se a pensar como alegorizar as situações da vida doméstica e do país numa história feita inicialmente para assustar.
Outro dado de extrema relevância é a harmonização das interpretações, a menina Nina Medeiros, o tenso Júlio Machado como seu pai, Luciana Paes como sua tia. E até a referência à sua mãe, que aparece em fantasia como uma zumbi na visão da garotinha, se estrutura perpendicularmente às outras formas vivas de interpretação. Todo filme é um pouco um filme de horror, lembrava Jean-Claude Bernardet inserido dentro dum filme dum amigo paulistano. A sombra do pai alarga estas meditações, restringindo-se aos atributos do gênero mas sutilmente expandindo-os. Encarceradas num local sombrio e fechado, presos às suas divagações que circulam sem sair para mais além, as criaturas de A sombra do pai propõem um jogo de cenários, corte e mergulhos quase abstratos (onde se passa tudo isto? que é que quer dizer?) que dá ao espectador golpes de precisão e encantamento que, tal como a alma de Dalva, a menina que quer resgatar a mãe do outro mundo, oscilam entre a ingenuidade primeira e algum rebuscado estético.
A sombra do pai não é propriamente a sombra do pai. São as sombras de um país (o país remoto ou o país brasileiro) que se põem diante dos cortes da mesa de montagem onde Gabriela executou sua narrativa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br