O Mais Belo dos Melodramas
Desencanto trata dum caso de amor, a margem do casamento, em que o sexo nao vai ser apresentado ao longo da historia
O cineasta britânico David Lean sempre foi um afeiçoado dos dramas românticos, transformando muitas vezes suas narrativas em onirismo sentimental, ainda quando os largos espaços dos espetáculos visuais grandiloquentes o empurrassem para grandes desvios das intimidades das personagens. Ao que parece, Desencanto (Brief encounter; 1945), filmado com precariedade de meios nos estertores melancólicos da II Guerra Mundial, contém a raiz de muito deste postulado melodramático que se encontrará nos filmes seguintes de Lean; e o realizador monta sua história de amor com uma delicadeza sem par na história do cinema. A despeito do arrebatado da paixão, Lean navega nas emoções de suas personagens com absoluta contenção e rigor estilístico: a força sentimental está ali, visível, mas nunca transborda.
As dificuldades de produção de Desencanto são visivelmente transparentes. A estática dos planos é obtida amiúde a duras penas e os movimentos de câmara se afiguram irregulares e truncados aqui e ali; mas é também sensível o agudo senso plástico de Lean, que já ali edificava uma linguagem cinematográfica densa. Lean é aí um artista, não um simples artesão da imagem, daí a emoção de sua estética.
Extraído duma peça teatral de 1936 de Noël Coward, com roteiro de Lean, Ronald Neame e do próprio Coward, o filme em momento algum deixa entrever o esqueleto teatral da realização. Mesmo concentrado muitas vezes nos cenários duma estação de trem, a narrativa de Lean apresenta sua fluência fílmica, algo diferente dos conceitos teatrais do cinema do americano Elia Kazan, basta pensar em Uma rua chamada pecado (1951), onde Kazan enforca a linguagem de cinema em seus cenários minúsculos. O sangue visual de Lean é de outro naipe.
Desencanto trata dum caso de amor, à margem do casamento, em que o sexo não vai ser apresentado ao longo da história. É, na prática, um amor do espírito: platônico. Não há a esperada cena de sexo, que em A filha de Ryan (1970) Lean encenou num bosque, com os seios pequenos e bem torneados de Sarah Miles à mostra diante da câmara. Em Desencanto há um adultério: a mulher casada apaixona-se por um desconhecido ao encontrá-lo num café da estação férrea. Mas fisicamente o adultério não se consuma. O que se consuma, inevitavelmente, é a impossibilidade do amor dos apaixonados e a melancolia final da separação.
Desencanto começa pela despedida dos amantes, no café: mas o espectador não sabe que se trata duma despedida. A chegada duma amiga tagarela da mulher põe em marcha a retrospectiva da história. Em determinado momento é como se a história estivesse sendo contada pela mulher a seu marido: o adultério confessado. Mas o que se vê no fim é que ela conta a si mesma, reconstituindo em sua mente os fatos, enquanto o marido a observa no devaneio silencioso dela. E Desencanto é bem isto: um devaneio cinematográfico sedutor. Seguidamente, a atenção narrativa se desvia, no mesmo cenário, da história dos amantes, deslocando a câmara para personagens secundárias, como a atendente do café: é uma forma de o narrador distensionar o peso dramático do amor do casal, que, de acordo com a época cinematográfica, é pintado entre o desejo e a culpa.
Do elenco do filme não constam os habituais grandes nomes da história do cinema. Mas certamente Celia Johnson e Trevor Howard, os intérpretes principais, estão notáveis, e Celia tem um momento transbordante na cena do fim em que sua personagem pensa em atirar-se debaixo do trem, como a Anna Karenina de Tolstoi.
A pintura da relação entre a personagem de Celia e seu marido marca o fosso entre duas almas: ela vive lendo e ele faz palavras cruzadas; pode-se lembrar Uma mulher suave (1969), do francês Robert Bresson, onde se anota que a mulher quer ver a encenação de Hamlet e o marido está a fazer palavras cruzadas. Claro: Lean não é Bresson, o francês trata os sentimentos com frieza intelectual, e os detalhes (as palavras cruzadas dos homens toscos) são de superfície. Mas não deixa de ser curiosa esta ponte entre dois filmes distantes em tudo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br