O Misterio Irresolvido no Cinema de Khouri
Walter Hugo Khouri, um mestre de filmar dentro do cinema brasileiro
Walter Hugo Khouri é um mestre de filmar dentro do cinema brasileiro. Ainda quando nos aborrecemos com a carruagem de suas divagações. Seus preciosismos de estilo, centrados nos movimentos de câmara, na montagem e na utilização dos intérpretes, são únicos entre nós e, malgrado as referências internacionais (o sueco Ingmar Bergman e o italiano Michelangelo Antonioni), exibem uma originalidade estética ainda pouco investigada.
O anjo da noite (1974) é um de seus filmes menos citados e vistos; e no entanto é uma de suas realizações mais criativas e belas. Sabe-se que Khouri, desde seu clássico Estranho encontro (1958), namora a encenação misteriosa, navegando por situações (como a sequência de quase-atropelamento deste filme dos anos 50) que excitam a curiosidade do espectador por motivações das personagens que nunca se esclarecem bem; porém, se em Estranho encontro Khouri ainda se agarrava a algum racionalismo de roteiro, em O anjo da noite ele se desapega inteiramente das razões fáceis, filmando como se estivesse dentro dum pesadelo mental de suas criaturas. O anjo da noite, nas correntes do cinema de Khouri, se aparenta com atmosferas plásticas (o espiritual de horror) de obras como As deusas (1972), As filhas do fogo (1978) e Amor voraz (1984). Como neste último filme citado, rodado dez anos depois, em O anjo da noite a personagem central carrega a estranheza narrativa. Em Amor voraz a personagem do ser extraespiritual (ou extraespacial) está muda o tempo inteiro, o que vem a inquietar seu mistério. Em O anjo da noite, para criar a esquisitice esquiva de Ana, a preceptora de crianças que chega a uma mansão burguesa em Petrópolis na serra fluminense, Khouri vale-se da expressividade singular da atriz Selma Egrei, com seus olhos, seu rosto, seu jeito de dispor-se para a câmara; Selma encarrega-se da consciência de um filme como O anjo da noite. Sua estranheza e inquietude tem um preço final: ela será morta por um empregado não menos estranho da casa, o preto Augusto, que a alveja inesperadamente e depois anda em círculos ao redor do corpo de Ana (a câmara circular é um dos dados da linguagem de Khouri, refinadíssima neste filme; e também a simbologia de cenários, com estátuas e outros objetos de cena, se casam com a circularidade dos movimentos da máquina de filmar). A morte de Ana no fim de O anjo da noite remete à morte de outra Ana, uma espanhola de Ana e os lobos (1972), de Carlos Saura, esta também uma Ana preceptora de crianças assassinada pelos irmãos patrões na cena final do filme de Saura; coincidência, influência ou uma afinidade cinematográfica com mais um europeu, Saura? Não importa: Khouri tem em O anjo da noite a disposição para autenticidade que poucos cineastas têm.
Como nota terminal deste comentário, observa-se que em O anjo da noite o intérprete negro Eliezer Gomes tem sua última participação no cinema; morreria prematuramente aos 58 anos. A escolha de Khouri escalando um negro para um papel meio demoníaco (a cena em que ele assusta as crianças, como se fosse um bicho-papão, é característica) foi tida por racismo do cineasta em alguns observadores; provavelmente seja verdadeira a observação, pois o racismo estrutural está incrustado em todos nós, mas isto não retira o brilho de O anjo da noite, especialmente na notável caracterização de Eliezer. É bom também lembrar que na obra-prima Joanna Francesa (1973), de Carlos Diegues, e penúltimo filme do ator, Eliezer é montado aos risos, como se fora um bicho, pela atriz francesa Jeanne Moreau. Racismo disfarçado de interpretação divertida? Creio que sim. Mas certamente também no filme de Diegues Eliezer tem seu brilho, no dueto com Jeanne.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br