O Sexo Metafisico em Khouri

Walter Hugo Khouri eh um dos mais personal?ssimos cineastas do mundo

04/03/2022 03:54 Por Eron Duarte Fagundes
O Sexo Metafisico em Khouri

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Walter Hugo Khouri é um dos mais personalíssimos cineastas do mundo. Ele se alinha no modelo estético do cinema espiritual em que o italiano Michelangelo Antonioni e o sueco Ingmar Bergman ditaram moda dos anos 50 para diante. O corpo ardente (1966) é um de seus filmes de maior paixão estilística e uma daquelas narrativas despidas das facilidades das ações físicas e capazes de transformar as relações com o espectador num confronto complicado. Barbara Laage, uma atriz francesa convenientemente dublada, no papel central duma burguesa cheia de tédio e comportamento retido e secreto, tem uma composição que lembra algo do asséptico que Antonioni pôs em sua musa Monica Vitti em alguns de seus filmes d’alma; mas Laage e Khouri sabem conferir personalidade própria a esta aproximação de formas (cinematográficas, interpretativas).

O corpo ardente, bastante antes de inserir o cinema de Khouri na carnalidade transbordante de O convite ao prazer (1980), quer discutir o sexo como elemento da metafísica. Neste aspecto, se liga àquilo que Eros, o deus do amor (1981) faz desde sua epígrafe, estabelecer uma filosofia transcendente do sexo. Só que no lugar do olhar-câmara do homem sobre o feminino como objeto de sua alma em Eros, o que vemos em O corpo ardente é a câmara acoplar-se ao olhar da mulher para o que se vê em torno. Como poucas vezes se vê no cinema, Khouri atinge aqui a mesma estatura de Antonioni ao valer-se dos exteriores (os cenários da casa, a natureza, todos os objetos cênicos) e fazer com que estes exteriores sejam incorporados na alma da personagem, utilizando densos e refinados movimentos de câmara e cortes de montagem e um extraordinário e agudo equilíbrio do controle dos intérpretes para ir dando vazão a esta reflexão dentro do vazio que é a chave de um filme como O corpo ardente.

Outro dado que liga O corpo ardente a Eros é o local de filmagem: a serra da Mantiqueira, em Itatiaia, no interior fluminense. É no pico do lugarejo que Márcia (Barbara) leva seu pequeno filho Robertinho. Quando Eros sai da opressão urbana, é lá que vai ter.

As relações entre o exterior em que está imersa e o interior de que é feita a personagem estão bem expostas em alguns planos cruzados que alternam cenas dum cavalo exuberante e sensual (extraviado por aqueles campos) com planos inquietantes do olhar e da expressão da atriz Barbara Laage; esta alternância de planos traz uma sutil e devastadora atração sexual entre a mulher e o cavalo, mas isto que seria brutal e animalesco se transforma em O corpo ardente num elemento máximo da metafísica erótica de Khouri. Mais adiante, o cavalo extraviado passa junto do carro em que vai a mulher (dirigindo), o marido e o filho, o marido filmando o cavalo numa câmara amadora; como na sequência do campo, agora na estrada rudimentar Khouri alterna a expressão de Barbara diante da câmara com o andar do cavalo ao lado do carro.

Do elenco. Além do trio central (Barbara Laage, o khouriano indefectível Mário Benvenutti como o amante e Pedro Paulo Hatheyer como o marido), temos a brava e deslizante Dina Sfat como a mulher dum empregado da casa (ambos são como os agregados das famílias de classe alta, tal como o José Dias do romance de Machado de Assis), Lilian Lemmertz tem suas breves aparições em seu primeiro papel no cinema e Sergio Hingst como o rancheiro que deixou seu belo cavalo extraviar-se no campo (Hingst está no cinema de Khouri desde Estranho encontro, 1958). Clodovil, uma persona famosa do Brasil na época, assina o figurino. Rudolf Mcsey faz a trabalhada fotografia. Rogério Duprat é o maestro habitual da partitura de Khouri.

O corpo ardente também se volta para um olhar sobre o fazer cinematográfico, meditação que Khouri aprofundaria em Paixão e sombras (1977). No começo do filme, o menino está consertando um projetor de filmes para poder ver as imagens na tela; durante o filme, o garoto filma várias coisas, sua família, os agregados, a natureza, o cavalo (o cinema amador da personagem se confunde com o próprio cinema que Khouri está fazendo), e há a cena do marido de Márcia filmando obsessivamente o cavalo para deleite de sua mulher; no fim do filme, o garoto está de novo consertando o projetor e, ao consegui-lo, exibe as imagens para sua mãe: Khouri em seu filme se apropria destas imagens do cineminha amador da personagem, as cenas filmadas pela personagem se transformam nas cenas de O corpo ardente, a telinha se agiganta na tela maior, as últimas imagens se hipnotizam diante da figura do cavalo cujos planos são no derradeiro quadro alternados com a expressão hipnotizada, apaixonada de Márcia, o primeiro plano do rosto erotizado da atriz Barbara Laage fecha o bloco de imagens do filme. Aí verdadeiramente o sexo metafísico de Khouri atinge seu apogeu.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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