Khouri e Paulo em 68

As Amorosas traz no centro da trama Paulo Jose no papel de Marcelo, um estudante pequeno-burgues desempregado

15/08/2021 02:07 Por Eron Duarte Fagundes
Khouri e Paulo em 68

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Antes do escrito: Paulo José faleceu em 11 de agosto de 2021. Na véspera, eu me pus a rever As amorosas, filme em que Paulo adaptava sua persona fílmica plasmada dois anos antes em Todas as mulheres do mundo, de Domingos de Oliveira. E, revendo, me pus a pensar no grande engenho de adaptação dum ator como Paulo ao universo depurado de Khouri. O texto que segue é também uma homenagem a este ator de grande saber, sensibilidade e sobretudo capacidade de interpretação, no cinema, no teatro e na televisão.

 

 

Walter Hugo Khouri é um cineasta do interior dos indivíduos. A questão social em seus filmes é acessória: não se entranha na linguagem. Mas 1968 foi um ano que, no planeta, fundiu o niilismo interior do ser com a rebeldia por novos comportamentos, o homem interior e o rebelde social chegaram a habitar por momentos o mesmo corpo. Por ali Khouri fez As amorosas (1968). Não se dirá que é um Khouri que fuja às características do diretor: tem a beleza formal de que ele tece sua construção de planos e inunda cenários e diálogos das preocupações do intelectual dos anos 60 com o vazio e a falta de sentido de nossa efemeridade. Mas neste filme Khouri abre seu cinema interior e  sombrio (que ele exercitara com agudeza em seus dois filmes anteriores, Noite vazia, 1964, O corpo ardente, 1966) para situações da época: vemos na cena a importância e a agitação do movimento estudantil (a estudante Ana, vivida por Anecy Rocha, e seu filmezinho amador de entrevistas documentais com gente do meio universitário) e também, numa sequência meio subterrânea, um típico grupo musical da época (Rita Lee e os mutantes) se apresenta num barzinho de estudantes.

1968 agiu sobre todos os artistas, para ficarmos neles, os artistas. O italiano Michelangelo Antonioni fez Zabriskie Point (1970), onde tergiversava sobre o explosivo meio estudantil americano dos anos 60. Mesmo uma obra profundamente introspectiva como Persona (1966), do sueco Ingmar Bergman, se alarga para o que vai pelo mundo: as revoltas com a guerra, especificamente a guerra do Vietnã. Khouri, o artista da alma por excelência no Brasil, não estava sozinho em seus desvios.

As amorosas traz no centro da trama Paulo José no papel de Marcelo, um estudante pequeno-burguês desempregado, perplexo, entediado, sem saber ao certo o que fazer da vida. Sua persona está, claro (isto é Khouri), às voltas com as mulheres. A primeira relação que aparece no filme é com sua irmã Lena, vivida por Lilian Lemmertz, esta atriz uma face habituada do universo do cineasta. A relação fraterna é complicada e ambígua: depois duma discussão em que Lena recrimina a Marcelo sua visão das mulheres, Marcelo chega a aduzir à irmã: “Pena que não estamos vivendo no Egito antigo; aí nós poderíamos casar.” O assunto do incesto é caro ao cinema de Khouri; basta pensar em filmes como Amor, estranho amor (1982), entre a mãe prostituta e seu filho no cenário dum bordel, e Eu (1986), a fantasia final em que, nos luxos duma mansão burguesa, um pai experimenta as delícias eróticas de sua filha, objeto constante de seu desejo. Em As amorosas, talvez por questões da censura de obras de arte no Brasil dos anos 60, talvez por pudores próprios da época, o incesto não é tão objetivo: é mais secreto e até um pouco alegórico.

Em boa parte da narrativa as hesitações amorosas de Marcelo se dão entre a intelectual (Ana, que começa entrevistando-o para um filme amador de estudante) e a frívola vulgar (Marta, amiga de Lena, a irmã de Marcelo, Marta, a atriz-vedete de televisão, outra peça iconográfica daqueles anos: e Marta tem a veleidade de querer fazer cinema); Marcelo derrama seu tédio e insatisfação entre as duas. A esta altura a figura da irmã Lena passa longe.

As cenas de amor físico de Marcelo com Ana são contrapostas à visão (da câmara e do olhar de Ana) dos livros-objeto que aparecem em sequência após os enleios corporais dos dois: livros, Ética (Spinoza), Voyage au bout de la nuit (Céline), Ficciones (Jorge Luis Borges), L’être et le temps (Martin Heidegger), D.H. Lawrence and human existence (ensaio), Women in love (D.H.Lawrence), Sexus (Henry Miller), discos, A love supreme, John Cottrane, Mozart. É a caracterização das divagações intelectuais e o vazio de sua procura.

Na sequência final, o estupro coletivo a que um grupo marginal expõe a vedete Marta, primeiro dentro do carro, depois no mato, tudo sob a impotência do ato de Marcelo, caracteriza outro vazio: o vazio da vulgaridade e do sexo. Em As amorosas Khouri transita com transcendente elegância entre estes Nadas opostos, ao modo dos anos 60.

P.S.: Em As amorosas a “estrangeira” usada por Khouri é Jacqueline Myrna Vulpes, uma atriz romena radicada no Brasil: ela é a vedete de televisão na história de Khouri. Sabe-se que Khouri, em sua filmografia, usou amiúde de “estrangeiras”: talvez um ícone de sua linguagem. Lola Brah (Estranho encontro, 1958; Fronteiras do inferno, 1959) é russa de nascimento. Barbara Laage (O corpo ardente, 1966) é francesa. Kate Lyra (O prisioneiro do sexo, 1979; O convite ao prazer, 1980; Eros, o deus do amor, 1981) nasceu nos Estados Unidos. Paola Morra (As filhas do fogo, 1978) é italiana. Rosina Malbouisson (As filhas do fogo) é portuguesa.  // Julia Lemmert, filha de Lilian (Lilian faz a irmã de Marcelo) aparece pela primeira vez no cinema, então bem pequena, ali pelos cinco anos de idade: uma única cena, ela aparece a uma mesa de refeição em família pedindo um pouco de massa em seu prato justamente à Lilian (há algo de realismo familiar nesta cena).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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