O Estranho Que as Divide

Amor voraz (1984) eh um dos trabalhos mais hermeticos de Khouri

16/01/2022 21:10 Por Eron Duarte Fagundes
O Estranho Que as Divide

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Walter Hugo Khouri é um pouco um cineasta entre parênteses dentro do cinema brasileiro: no seio de um cinema voltado para o exterior e para o social, Khouri mergulha no interior (às vezes abissal) de suas criaturas. O crítico José Carlos Avellar captou essa realidade estética do realizador ao acumular uma série de impressões sobre diversos filmes dele no corpo do livro O cinema dilacerado (1986); o texto de Avellar sobre Khouri, escrito metaforicamente entre parênteses, entre o irônico e o desorientado, é uma espécie de oásis crítico naquilo que Avellar propõe como reflexão brasileira em seu livro. Khouri não faz um cinema que se entrega facilmente ao espectador, ainda quando construiu narrativas mais acessíveis e com abundância física; o cinema que ele faz, exige do espectador, e exige que o espectador vá em busca do filme, o encontre de fato como filme.

Amor voraz (1984) é um dos trabalhos mais herméticos de Khouri. É aquele tipo de filme em que o espectador tem de sair à sua caça, e nem sempre o vai topar nos modos fáceis duma convivência de plateia. Fotografado por Antonio Meliande, o filme, desde o primeiro contato ali pela metade da década de 80, revela a capacidade de tensão plástica de Khouri como poucas vezes se viu: iluminação, corte, cenários e deslocamento de personagens com a precisão formal que Khouri foi depurando cada vez mais com os anos. No entanto, a narrativa se perde nos liames de sua teia. Sua atmosfera visual sedutora e provocativamente misteriosa se torna amiúde arrastada, pesada; aquela confiança de Khouri de que o rigor plástico, produzindo a beleza, possa estabelecer a profundidade das relações em cena não se concretiza; espiritualmente aparentado aí com aquilo que fez na França Robert Bresson, falta a Khouri neste filme algo próximo da famosa centelha bressoniana, como dar sentido a coisas fugitivas, tão imateriais. Khouri perde-se em sua metafísica de filmar; e o espectador desorienta-se, hipnotizado pelos aspectos visuais duma linguagem cinematográfica naturalmente soberba.

Amor voraz é um filme de mistério e de ficção científica. Três mulheres estão numa casa isolada no campo e ali dão com um homem que apareceu do nada, como se fosse um extraterrestre, ele não fala, não reage. Anna, a principal das personagens femininas, se enfeitiça dele: aparentemente transa com ele, não se sabe nem se vê como. Anna quer cuidar dele. Silvia, uma espécie de governanta, ou parente, em princípio não tocada da loucura de Anna, quer que ele vá embora; até o momento em que começa a aproximar-se dele. Júlia é a terceira mulher entre as duas. Vai surgir uma quarta: Marianna. Khouri sabe cercar-se de atrizes características para viver suas mulheres: Vera Fischer (então dividida entre o filme de Khouri e as filmagens de Quilombo, 1984, de Carlos Diegues) é Anna; raramente Vera esteve tão introspectiva num filme quanto nas mãos de Khouri (antes, ela fizera com Khouri o extraordinário Amor, estranho amor, 1982, menos esotérico, mas também sinuoso). Márcia Rodrigues, a garota de Ipanema do filme dos anos 60 de Leon Hirszman, é a impositiva Sílvia, bastante longe da persona trivial e descontraída de sua juventude em Ipanema. E Bianca Byington, uma jovem que teve seu brilho interpretativo centralizado na década de 80, é a indecisa ou dividida Júlia. Cornélia Herr é o quarto enigma de fêmea. Marcelo Picchi, o ator entre elas, compõe a mudez de sua personagem como a perplexidade do homem diante do fenômeno feminino. Aqui nestas linhas vai um espectador, admirador do cinema de Khouri, que, tanto em 1986 no lançamento do filme no Cinema Um, Sala Vogue quanto neste 2021 de revisão pelos caminhos da internet, não encontrou ainda a paixão de ver Amor voraz: a estética brilhante do cineasta na cabeça deste observador circunda o vazio e o gelo. Mas Amor voraz é, de qualquer maneira, assim, desde sua construção material nos arredores da represa de Guarapiranga, em São Paulo: está em busca de seu espectador, mas ao vê-lo, quer que ele, assistente, o busque.

Num texto-reportagem chamado “Khouri: um dia, uma filmagem”, de Tuio Becker, publicado na revista Moviola número 3, do Verão/Outono de 1984 (a equipe da revista então no set de Khouri: Marco Antonio Bezerra Campos, Maria Lúcia de Azevedo Fróes, Tuio Becker, Renato Pedroso Júnior), se lê: “Já é noite fechada, faz mais frio e a chuva continua. No filme, é dia: a lavanderia encontra-se inundada pela luz do sol enquanto Márcia e Bianca discutem se telefonam ou não para a polícia avisando da chegada o estranho ser à sua casa.” Revendo a cena que divide as personagens femininas sobre o ser masculino no filme de Khouri, não posso deixar de pensar nestes meus quatro amigos que lá estiveram com Khouri e sua caravana cinematográfica (Renato não aparece nas fotografias que ilustram o texto de Tuio: ele era o fotógrafo da equipe). Eu deveria estar lá; deveria ter saído naquela foto. Talvez assim tivesse encontrado o Amor voraz que ainda não me é dado, passadas tantas décadas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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